Fevereiro

AZEVEDO, José Bernardo de
Discurso dirigido aos eleitores de comarca, que concorrerão na Basilica Patriarcal de S. Maria Maior no dia 17 de Dezembro de 1820 / José Bernardo de Azevedo. - Lisboa: Na Typographia Rollandiana, 1821. - 12 p. ; 20 cm
Col. Vieira da Silva, VS 0405/B3, enc. com outras obras-  Cota: MISC-52 

Face à «conjunção mais arriscada, [e] talvez a mais crítica da nossa vida» há de facto que usar de todos os “meios” para chegar às pessoas. E conforme já tivemos oportunidade de explicar na ficha histórica de janeiro a oralidade assumia papel de relevo na sociedade oitocentista, e o Doutor José Bernardo de Azevedo, cónego da basílica patriarcal de Santa Maria Maior1, estava absolutamente ciente disso e, enquanto oficiante da missa do Espírito Santo celebrada a 17 de dezembro de 1820 nessa mesma basílica, não deixou passar a “oportunidade” de sensibilizar (diríamos no léxico atual)  os fiéis, paralelamente «eleitores de Comarca2», no sermão que proferiu antes do «Congresso Respeitavel» e/ou «Magestosa Assembléa». 

Mas, e antes de prosseguirmos impõe-se um encontro com Isabel Vargues, dado que a autora esclarece que “Portugal viveu um dinâmico debate político em torno do significado das Cortes (...), medindo-se forças entre os que defendiam a existência das antigas Cortes e os que propunham uma assembleia, eleita, e que fosse uma verdadeira representação nacional”. Esclarece também que houve necessidade de criar a Junta de Cortes (que na linguagem atual diríamos que equivaleria a um Comité Consultivo), que por sua vez recebeu os mais de 500 pareceres3, tanto individuais como coletivos (apresentados em nome de instituições), provenientes de todo o país. Sendo que alguns desses pareceres  assumiram uma feição pública, ou seja, foram impressos em periódicos ou folhetos avulsos, e dentre eles está o do cónego4 que proferiu o sermão que iremos  analisar (VARGUES, 1997: 118-119).
       
Agora, e feita a devida moldura de contexto, estamos em condições de adentrar e poder, então, esmiuçar o dito sermão. E começaremos por ressaltar precisamente a própria data, pois que estamos apenas um trimestre à frente da data da inequívoca adesão de Lisboa à causa liberal. E ao nível litúrgico a data de 17 de dezembro situa-nos em tempo de Advento, ou seja, de piedosa expectativa para o nascimento de Jesus Cristo. E a tomarmos em conta esse sentido mais simbólico, poderíamos alvitrar que a própria data pudesse (também) ter uma quota de importância, decalcando esse sentido de expectativa para algo que está prestes a nascer, todavia acreditamos, antes, num sentido mais pragmático que se prende com o facto de se “estar à porta” do dia 19 de dezembro – dia em que iria haver eleições no Senado da Câmara de Lisboa para nomear os 24 eleitores da comarca de Lisboa. 

O cónego, nas palavras introdutórias do sermão adverte para a importância da eleição do eleitorado que terá, depois, voz no «Congresso Respeitavel»  apelando para a escolha de homens beneméritos, homens dignos da Religião, e do Estado, possuidores de um nobre desinteresse pessoal, animados de um verdadeiro espírito de rectidão, de ordem, de paz e de justiça (…) (pág. 2), qualidades que apresenta como garantia da administração do bem comum, o bem geral da nossa amada Pátria[5]. O Doutor José Bernardo de Azevedo prossegue na ideia do bem comum, que terá necessariamente que assentar na imparcialidade e na recusa de “amizade e ódio” – altas barreiras que nos separarão da verdade”. Parece também querer alertar os fiéis para o perigo discursivo utilizado pelos liberais, (…) cada um guiado, ou antes iludido pelos impulsos do seu amor próprio (…) mais se afasta, se alonga, e se vai separando do espírito da Lei e dos ditames de uma recta e desabusada razão[6], responsabilidade que o cónego  atribui ao movimento liberal, apelidando-os de turbilhões caliginosos que se estão a formar rapidamente na atmosfera e que com a sua impetuosa direcção derrubam e varrem pelos ares (…); o espírito de partido desfigura, e transforma virtudes (…) confunde a sabedoria com a ignorância; equivoca a Religião com a hipocrisia, a jovialidade com a libertinagem (…). No remate discursivo dessa ideia de “espírito de partido”, vai ficando cada vez mais clara a crítica (e a ideia) que lhe está subjacente, ou seja, a “mãe” «desses males» referindo-se à revolução francesa (que entregou o rei Luís XVI à guilhotina), e que nos parece ficar evidente nestas palavras:  (…) a par dos sanguinosos estragos, que o partido vai derramando pelas Sociedades porque passa, e em que desgraçadamente se introduz. (…) Longe, longe de nós o fanatismo, porém mais longe ainda a mal entendida liberdade, essa origem funesta e causa fatal de todos os males, e de todas as desgraças que tem inundado o mundo (…) a mal entendida liberdade, este fundamento ruinoso de todo o sistema revolucionário, que à força de vulgarizar-se tem pretendido acabar, e dissolver todos os Estados, derrubar, e destruir todos os Tronos, decapitar todos os Soberanos, confundir todas as classes (…) (páginas 5 e 6). E nas páginas seguintes (nomeadamente a 7 e 8), o cónego encerra com toda a clareza o seu pensamento: Desde a época fatal em que a França iludida por esta liberdade quimérica, liberdade ideal, liberdade fantástica, insubsistente, impossível em todas as hipóteses, fez rebentar no meio de si o vulcão revolucionário (…). A liberdade natural, este princípio revolucionário, que faz todos os homens iguais, e livres por natureza e que tão fácil seria talvez de sufocar na sua origem, tem-se propagado sem obstáculo, e apesar de seus horríveis estragos, e perniciosas consequências tem hoje penetrado em todos os países (…). E, para sublinhar a magnitude desse mal, que lhe mereceu a designação de «doutrina revolucionária», o cónego recorreu à imagem da «venenosa hydra» - monstro da mitologia grega, com corpo de dragão e com 7 cabeças de serpente7  (também aparece figurada com 3 e 9), que habitava num pântano junto ao lago de Lerna e que graças ao sangue e hálito venenoso matava qualquer um que dali se aproximasse.     

Daí que o Doutor José Bernardo de Azevedo apele para a necessidade de contrariar «os sanguinosos projectos» e para isso, segundo ele, é preciso: escolher, e nomear homens, que fiéis a Deus, obedientes, e submissos ao Rei, e amantes de seus Concidadãos, do Povo e da Pátria, associados em um só Corpo (…) saibam por suas ilimitadas luzes, e profundos conhecimentos, prevenir, acautelar o abuso, que uns podem fazer da sua autoridade (…) (pág. 5). Pois que, todos os Portugueses, à excepção de bem poucos, porque enfim nas melhores searas também se encontra algum joio [a fazer a ponte para a parábola que ficamos a conhecer em Mateus. 13: 24-30], de resto todos os Portugueses são cristãos, e honrados, bem persuadidos do que devem a Deus, ao Soberano e à Pátria (…) (pág. 8). E na página 9, percebemos que nas entrelinhas o cónego ofereceu aos fiéis mais uma comparação, desta feita recuando ao Antigo Testamento e trazendo à colação o ensinamento que o profeta Ezequiel (8-10) veio trazer ao povo de Israel, por este estar cada vez mais mergulhado no pecado da idolatria e por conseguinte mais afastado de Deus. 

E, a exortação final (páginas 10 e 11) corresponde à invocação do “Divino Espírito Santo”, o cónego roga pela intercessão da misericórdia divina junto dos fiéis: vinde, Senhor, enchei de vossa admirável Virtude este Templo Augusto (…): Santificai nossas almas, ilustrai com as luzes da Vossa Graça o entendimento, e movei, preparai a vontade destes beneméritos, e honrados Eleitores, que com seus votos irão daqui a pouco decidir da felicidade da minha amada Pátria (…).    

Pelo que, e face ao que foi exposto, fica por demais evidente o posicionamento do cónego da basílica de Santa Maria Maior, Sé de Lisboa, que, e como facilmente se depreende, não poderia deixar de alinhar com os ditames do Clero.  

  

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1. Designação pela qual a Sé de Lisboa (também) é conhecida, devido à invocação a Santa Maria (orago que terá acabado por, subsidiariamente, lhe dar o nome).  
2. Para compreender melhor a nomenclatura territorial-administrativa desta época, sugere-se a síntese elaborada por Elisabete Gama, que entre outras revisitações dialogou com o valioso trabalho “As Freguesias de Lisboa...” de Augusto Viera da Silva. Vide: GAMA, Elisabete (2011). “Freguesias de Lisboa. Legislação Fundamental (Séc. XVIII-XX)”, in VALENTE, Anabela (Coord. Geral) – Nova Proposta Administrativa para Lisboa. Lisboa: Câmara Municipal de Lisboa, DMC-GEO. Pp 39-40.  
3. Presentes no A.N.T.T. (Min. Justiça, Mº 104, n.º 1)  sob a designação “Relação dos votos ou pareceres que acerca da representação Nacional Portuguesa em Cortes recebeu a Junta Provisional Preparatória das Cortes”. In, VARGUES, Isabel Nobre (1997) – A aprendizagem da Cidadania em Portugal (1820-1823). Coimbra: Editora Minerva.
4. Que, e segundo Vargues recebeu a seguinte designação: Resposta e parecer do doutor José Bernardo de Azevedo (1821).
5. Por que não é de somenos importância compreender as diferenças entre «pátria», «nação» e «Estado» traz-se a lume a expertise de Fernando Catroga, que patenteado na intensidade dos sentimentos colectivos que os vocábulos despertam ajuda-nos a perceber que “a ideia de nação actua, sobretudo, como «instância de conexão» entre a de pátria e a de Estado, procurando caldear a «frieza» desta com o calor daquela (…) não é raro encontrar-se o Estado configurado pela metáfora do «navio» (…). Distintamente, a nação é amiúde equiparada a uma «família» ou «corpo moral», que consensualiza ou unifica os indivíduos que fazem dela uma comunidade portadora de destino. (…) os conceitos de pátria e de nação têm origem e significados diversos – o primeiro pressupõe o acto de concepção, enquanto o segundo indica o de nascimento. Mas é um facto que eles acabaram por se cruzar. Na modernidade a nação está na pátria, mas exige um território (real ou imaginário) e uma população. Em simultâneo, para se afirmar como nós, ela tem de ser narrada como um omnipresente sujeito colectivo que, no tempo, realiza um destino sacral ditado pelas origens”.  In, CATROGA, Fernando (2011) – Ensaio Republicano. (Ensaios da Coleção FFMS). Lisboa: Relógio D`Água Editores. Pp. 16-17. 
6. Não será demais ir (novamente) ao encontro de Catroga, para compreender as debilidades que o cumprimento virtuoso da revolução francesa enfrentava, ia-se percebendo que o cariz corruptor do abuso do poder afinal não estava extinto. In, CATROGA, Fernando (2011) – Ensaio Republicano. (Ensaios da Coleção FFMS). Lisboa: Relógio D`Água Editores. Pp. 90-97.  7. Sendo que a sua morte correspondia ao segundo trabalho que o deus (caído) Héracles (ou Hércules, como é conhecido na mitologia romana) tinha que enfrentar para recuperar o estatuto de divindade respeitosa, porém a hidra, filha de Tifão e de Equidna, tinha ainda a especificidade/dificuldade de a cada cabeça cortada, em seu lugar nascerem outras duas. Prova que Hércules só superou graças a ter descoberto que a eliminação (definitiva) de cada cabeça (em alegoria aos vícios da sociedade) só era possível graças à cauterização desse sítio, e foi com a ajuda do seu sobrinho que com recurso a uma tocha queimava imediatamente o local da cabeça de serpente que Hércules ia decapitando, sendo que só a cabeça do meio, considerada imortal, pôde ser enterrada sobre uma pedra.

 

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