Maio


Carta Pastoral de D. Carlos I, Cardeal Patriarca de Lisboa - Bayonnne : [s.n.], 1821. - 8 p. ; 24 cm.

Cota: LEG 193

 

 
Chegados a maio, e depois de todos já termos constatado que o corpus documental que tem vindo a lume imbrica-se/ complementa-se… propõe-se que antes da leitura desta Pastoral, e respectiva ficha de contextualização, (re)visite a ficha histórica do mês de fevereiro – pois a compreensão de ambas sairá reforçada.

 
Bem sabemos que no âmbito católico e após a exaltação que caracterizou a época barroca, alicerçada na fé tradicional, seguiu-se a secularização, a laicização e a descristianização devida ao Iluminismo racionalista e naturalista, que, consequentemente, trouxe consigo uma nova mentalidade. Esta (nova) espada golpeava com palavras e zargunchava no campo político, social, cultural e talvez mais ainda no religioso. A Igreja, no seu conjunto conservadora, foi ferozmente posta à prova, e viu-se a braços com a perda de importância e de credibilidade. Aliás, era já inequívoco o caminho que o final do século XVIII decidira trilhar, onde a título de exemplo dessa senda anticlerical podemos convocar a poesia de Bocage1 (que na contenda poética com José Agostinho de Macedo, «o padre Lagosta», podemos intuir os vícios de relaxação da classe) ou a bibliografia estrangeira, nomeadamente com Beckforf e Baretti que desferem duras críticas à sociedade ociosa e lasciva da época, onde o clero2 não sai ileso – bem pelo contrário.

 
Mas, e para aliviar o peso sobre os nossos ombros (pois que o assunto é mais vasto e complexo do que à primeira se adivinha) e encurtar a sapiência que assumidamente não possuímos, introduzimos as palavras de António Matos Ferreira3 (2011: 7) e Manuel Clemente4 (1991: 122), respectivamente, para fazer a primeira moldura desta relação da religião com o liberalismo.

 


i) “Religião e cidadania, dois termos que transportam uma enorme actualidade, mesmo se povoada por múltiplas contradições e conflitos. A primeira expressão diz fundamentalmente respeito aos sentidos das relações e da pertença, à natureza dos vínculos associados à valorização e o crédito depositado no agir e na percepção da realização individual e social, surgindo como factor de coesão ou de tensão social (…). O segundo termo, associado às sociedades liberais, democratas e abertas, surge como direito e como dever (…). A religião e a cidadania são instâncias de identificação, mas também de participação ou de resistência, de indiferença ou de protagonismo.”

 
ii) “(…) podemos apurar que o catolicismo tradicional se sentia pouco à vontade na Lisboa do fim dos anos vinte? Que ao unanimismo religioso se sucedera a crítica e até a inibição da prática e da afirmação pública?”

 


Fica por demais evidente que a pátina do absolutismo religioso cedeu, agora, o protagonismo à Ilustração, onde a razão e a crítica assumiram o lugar que outrora tinha pertencido à religião…, abrindo assim a porta (oficialmente) à tensão social. Numa leitura mais ampla, podemos dizer que em Roma o século XIX inaugurou com o pontificado de Pio VII e manteve-se sob o 251º Sumo Pontífice da Igreja Católica até ao ano de 1823. Pontificado esse que foi marcado por profundas alterações na Igreja, tendo a França, pelas razões que sobejamente se conhece, ocupado lugar cimeiro nas preocupações do Pontífice; e ainda que nos critiquem por nos afastarmos um pouco do cerne gravitacional que aqui interessa, mas justificados pela riqueza e abrangência que convida à ulterior compreensão, respiga-se fragmentos da documentação pontifícia de Pio VII. Na primeira encíclica, Diu Satis5 (15 de maio de 1800) enfâse para as seguintes palavras do Santo Padre, “quão grande é minha tristeza e uma dor contínua pressiona meu coração, pelos meus filhos que são os povos da França e todos os outros com quem a mesma fúria ainda não se acalmou. O que mais eu poderia querer do que dar minha vida por eles se a salvação deles pudesse ser paga com a minha morte?”, a última, não é menos merecedora de atenção - Vineam quam plantavit; destaque também para o breve Dominici gegris6 (que datam de 1817 e 1819, respectivamente) percebendo-se que a preocupação magna da Santa Sé se mantém. Próximo do fim do pontificado, e se lermos a bula ecclesiam a Jesu (de 13 de Setembro de 1821)7 compreendemos que a cruzada de Pio VII está longe de se esgotar, desta feita, adverte os fiéis para o perigo das seitas (especialmente a Carbonária) “esses homens que se apresentam em roupas de cordeiro, mas no fundo são lobos vorazes”.

 
E é com esta moldura teo-sociológica, em que o velho regime católico-monárquico europeu, por assim dizer, se vê cada vez mais debilitado, que Initiates file download D. Carlos da Cunha é nomeado patriarca de Lisboa, após 10 anos de sede vacante8 (e no consistório de 27 de Setembro de 1819 o Papa Pio VII fá-lo cardeal). Aliás, Teresa Ponces9 esclarece que com “Carolus I” fecha-se o ciclo dos bispos de Lisboa escolhidos entre a alta aristocracia do reino, a autora adianta também que, a par com o berço em que nasce10 , mantém-se fiel aos ideais absolutistas, sem nunca vergar, mesmo quando a 15 de Setembro de 1820 (data que, por diversas vezes, já tivemos oportunidade de descodificar a importância) deixa de pertencer à regência do reino, incumbência que lhe tinha sido entregue pela mão de D. João VI aquando da sua estada no Brasil; mas a prova magna da sua lealdade à Casa de Bragança dá-a no momento de jurar as Bases da Constituição, tarefa que delega por via de uma procuração ao principal Silva (com excepção dos artigos 10.º e 17.º, que segundo ele versavam assuntos da sua competência), manobra hostil ao liberalismo que o terá obrigado a recolher-se no convento do Buçaco, onde viria a receber mais tarde ordem de expulsão – que o terá levado a exilar-se na cidade de Baiona, onde continuou a assegurar a sua actividade epistolar. E, é a partir de França que redige a instrução pastoral dirigida aos fiéis da diocese lisbonense e que vamos sumariamente analisar (dado que a clareza da linguagem, a somar à destreza semântica que o leitor entretanto já possui, dispensa a análise detalhada) de seguida.

 
Reunidas, então, as condições que permitem informar a compreensão da Pastoral, destacaremos o que nos mereceu maior relevo, o exílio: que foi por força arrancado do meyo das ovelhas, e por fim da nossa Pátria, e o juramento das Bases da Constituição, quando comnunicamos às Autoridades Ecclesiaticas as ordens que recebemos, para ellas darem o juramento sobre Boses da Nova Constituição não inter puzemos o nosso parecer, sobre se devião, ou não, prestalo: não mandamos que se desse (como inadvertidamente se tem publicado); nem de maneira alguma quisemos influir na opinião do nosso clero (…). Comtudo se na procuração que passámos para darmos o mandado juramento, puzemos nos artigos 10 e 17 algumas distinçõens, ou declaraçoens, não foi, porque ignorássemos o que nestes mesmos Artigos hé de competência da Soberania temporal; mas sim, porque nunca nos parecerá repreensível; antes o teremos sempre, como muito conforme ao nosso Ministerio Espiritual (…)., nas págs. 2 e 3, respectivamente.

 
Prossegue como quem articula alegação de defesa aos fiéis: Não se diga também que o nosso espirito se alucinou a este respeito. (…) porque o sacerdocio não se governa pelas leis do Imperio: he hum distincto do outro (…). Mas como o exercio da nossa jurisdição em parte se impossibilita pela nossa ausência, julgamos ser do nosso dever declarar, para socego das vossas consciências, que logo que recebemos ordem para sahir do nosso Patriarchado ehir para o convento do Bussaco, imediatamente expedimos huma provisão ao exmo. Collegio pella qual delegámos toda a nossa jurisdição ordinária. Nessa mesma pág. (4) deixa também a seguinte admoestação, a propósito dos liberais, aos fiéis, Vemos que os impios, esse novos e falsos filósofos, esses verdadeiros precursores do Antichristo (…).

 
Assumindo a eventual crítica do (duplo) afastamento (se considerarmos excessivo o salto temporal de quase 30 anos, que acreditamos ajudar a pensar em perspectiva), convidamos o leitor a ir ao encontro das primeiras páginas do jornalInitiates file downloadA Nação de 10 de abril de 184911 , pois que o jornalista, que em justificação da sua imparcialidade afirma “detestar tanto o fanatismo como a impiedade”, apresenta uma reflexão, que dirige ao Patriarcado de Lisboa, sobre o estado da religião que talvez importe revisitar.

 

 

Para consultar o documento clique em: Initiates file downloadLEG 193

 

 

1. Consultado em CIDADE, Hernâni (1980) – Bocage: a obra e o homem. Lisboa: Editora Arcádia

2. Que por sua vez, ao nível interno, já tinha (também) identificado condutas de promiscuidade e venalidade que interessava sanear, como pode atestar (lapidarmente) a Pastoral de 1742 do Arcebispo de Braga, ou um outro testemunho de Fr. João de Mansilha (que data da segunda metade de Setecentos), esta documentação, entre outra, é analisada por Daniel Pires no ensaio “As Quadras do Povo: um caso elucidativo de anticlericalismo republicano” que integra a obra: FRANCO, José Eduardo e ABREU, Luís Machado de (coord.) (2014). Para a História das Ordens e Congregações Religiosas em Portugal, na Europa e no mundo – vol. II. Lisboa: Paulinas Editora, pp. 539-556

3. FERREIRA, António Matos e ALMEIDA, João Miguel (coord.) (2011). “Introdução”, in Religião e Cidadania – protagonistas, motivações e dinâmicas sociais no contexto ibérico. Lisboa: Centro de Estudos de História Religiosa – UCP, pp. 7-14

4. CLEMENTE, Manuel (1991). “LAICIZAÇÃO DA SOCIEDADE E AFIRMAÇÃO DO LAICADO EM PORTUGAL (1820-1840)”, in Lusitânia Sacra, 2ª série, 3, pp. 111-154

5. Fonte: https://w2.vatican.va/content/pius-vii/it/documents/enciclica-diu-satis-15-maggio-1800.html

6. Fonte: https://w2.vatican.va/content/pius-vii/it/documents/breve-dominici-gregis-25-agosto-1819.html

7. Fonte: https://w2.vatican.va/content/pius-vii/it/documents/bolla-ecclesiam-a-jesu-13-settembre-1821.html

8. À morte de D. José Francisco Miguel António de Mendonça (Josephus II) a 13 de fevereiro de 1808 (que antes de expirar ainda se viu confrontado com a ida da família real para a o Brasil e com a chegada dos franceses – que o obrigou a redigir uma Pastoral (8 de dezembro) a reiterar as instruções de quietação régia (emanadas a 26 de novembro de 1807).

9. PONCES, Teresa (2009). “D. Carlos da Cunha (1818-1825)”, in AZEVEDO, Carlos A. Moreira, SALDANHA, Sandra Costa e António Pedro BOTO de OLIVEIRA (coords.) - Os Patriarcas de Lisboa. Lisboa: Patriarcado de Lisboa. Centro Cultural Aletheia, pp. 68-72.

10. Filho segundo de Pedro da Cunha de Mendonça e Meneses e de Joana Catarina de Mello, da Casa dos Marqueses de Olhão, Condes de Castro-Marim.

11. Que foi editado entre 1847 e 1928, e pode ser consultado no endereço: http://purl.pt/28600

 

 

 

 

 

 

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