O Odreiro

O seu labor era o fabrico de odres para venda ou aluguer. Os odres eram recipientes de couro em formato de bolsa ou saco produzidos em pele de animal podendo ser de bode, cabra ou ovelha. Serviam para transportar líquidos, especialmente o “mosto” o sumo da uva pisada no lagar, vinagre, azeite, leite ou água e dadas as suas características, eram úteis no armazenamento e transporte de líquidos sensíveis à oxidação, como o caso do vinho ou do azeite, existindo em todos os tamanhos. A Rua dos Odreiros já não está representada na toponímia actual, mas constava no mapa de Lisboa anterior ao terramoto, ia desembocar no lado sul da praça do Rossio, coincidindo com parte da actual rua Áurea.

Há registos de que o odre era já na Antiguidade um recipiente muito generalizado e valorizado, para diversos produtos como o mel, água, cereais, vinho, entre outros. A Bíblia também menciona os odres no que é conhecido como a parábola dos odres novos e antigos “não se põe vinho novo em odres velhos”. Para além do seu uso comum, eram muito utilizados por pastores caminheiros, peregrinos, militares, por quem se deslocava por longos períodos cumprindo sempre a sua função no âmbito do abastecimento. “(…) os exércitos dos antigos portugueses não marchavam sem boa provisão de odres, porque deles se serviam os soldados para passarem os rios” (Bluteau, R.)

Adequados para caminhadas, eram elaborados para se transportarem junto ao corpo, em versão à “tiracolo”, com quantidades mais limitadas de produto, ou de maior dimensão, que se transportavam “às costas” requerendo alguma robustez física. Como eram flexíveis e se adaptavam ao volume transportado, era possível retirar uma parte de líquido e fechá-lo novamente retirando-lhe o ar, evitando a oxidação.

A escolha do animal deveria ser feita com conhecimento e o processo de abate e tratamento da pele deveria cumprir critérios rigorosos de modo a evitar rasgos, cortes ou buracos, o que nem sempre seria fácil, tendo em conta que a pele não poderia sofrer danos e deveria ser despojada habilmente de uma só peça, para que tivesse costuras mínimas. A pele era curtida consoante o conteúdo que o recipiente se destinaria a transportar.

Para se fazer um odre, a pele deveria ser virada do avesso e untada por dentro para conferir impermeabilização e as costuras vedadas, utilizando-se tradicionalmente “pez”, uma seiva viscosa, um produto resinoso de origem vegetal, cujo único inconveniente poderia ser o sabor e gosto que passava ao produto nele transportado. Todo este processo fazia parte da aprendizagem inicial do aprendiz e futuro candidato a oficial. Terminado o período de instrução submetia-se a exame e sendo aprovado, poderia adquirir carta de exame e usar o ofício em loja própria sendo assim designado como mestre “todo o oficial que se quiser examinar fará uma caldeira de pez, 3 pelles novas (…) sem tisourada alguma e um lombo de uma pelle feito de alto a baixo bem lavrado e as pelles serão defumo ou encascadas (…) e cortará um odre em borrachas [couro cozido no meio, que tem bocal de pau] e depois de se estreitar no gorgomilo [garganta], se alarga no bojo e as coserá debruadas e sem debruns e serão bem cosidas e assim deitara um rodelo [remendo] e um odre e lhe verão pegar duas pelles e verão a tempera [dureza e flexibilidade] do pez se vay qual deve para a obra ficar bem feita”. Caso a obra não fosse realizada convenientemente não ficaria aprovado, pelo que deveria submeter-se a mais seis meses de aprendizagem, não podendo exercer ou abrir tenda até sair apto do exame, incorrendo em multa e prisão. Entre 1760 e 1834 realizaram-se 55 exames a futuros mestres odreiros em Lisboa, com registos decrescentes, atingindo em 1834 o total de apenas 4.

Não obstante as suas lojas se encontrarem dispersas pelo burgo lisboeta, o governo da cidade determinava que se deveriam estabelecer na Rua dos Odreiros, “deveriam estar arruados e estabelecer-se nas lojas e sobrelojas que houver para o exercício de seus ofícios e nenhum outro oficial deve ocupar este arruamento”. Na cidade medieva esta rua tinha uma localização mais periférica, mas com o crescente desenvolvimento da baixa da cidade, acabou por adquirir maior centralidade.

O couro era uma matéria -prima com grande utilidade prática no quotidiano e de grande procura por vários artífices, no qual se incluía o odreiro. Tiveram representação na Casa dos Vinte e Quatro, sempre como “anexos” e os regulamentos de 1539 e 1771 agruparam-nos com os artesãos que se dedicavam ao fabrico do calçado mais os curtidores, sobre a importante bandeira de S. Crispim como seu santo padroeiro.

O Campo do Curral (local onde se recolhia e se procedia ao abate do gado na freguesia da Pena) era o local onde os compradores se deslocavam para se abastecer, mas nem sempre se supriam as necessidades, como atesta uma petição enviada ao Senado em 1551, na qual consideravam estar em causa a sua sobrevivência: “dizem os odreiros que eles compram no curral pelles para o seu offíçio e para os mostos e aseite nestes tres meses do anno Julho, Agosto e Setembro e todo o mais tempo do anno comprão cortidores e çapateiros em não lhe dando a elles suplicantes nestes meses, pelles para seu ofício não havera com que recolher a novidade do vinho nem o poderão o mais tempo usar de seu oficio e o curtidores e sapateiros lhe pedem comprarem aos suplicantes e lhe atravessão as peles e os Marchantes lhas não querem vender por ser mais travalho tirallas serradas (…)”. Ao Senado coube regular, determinando que as peles deveriam ser retiradas inteiras do animal sob pena de multa e que os compradores as adquirissem por todo o ano e as deveriam “repartir” sempre que fosse necessário, e que a compra e a “importação” de fora da cidade se realizasse com registo obrigatório pelo comprador aos juízes do ofício.

Em 1630 há registos que os odreiros poderiam cobrar pela venda de odres, valores entre os 250 até aos 350 réis, consoante o tamanho; já o aluguer ao dia variava entre os 5 e os 8 réis, sendo os mais dispendiosos aqueles que serviam para transportar os mostos e o azeite.

Em 1767, em virtude de considerarem estar a viver em decadência, sofrendo com uma grande perda de lucros, pela concorrência de muitos odres, borrachões e borrachas que vinham do estrangeiro, os odreiros pediram para elevar o preço do aluguer diário para 10 réis por dia, por os preços se encontrarem muito desactualizados.

Actualmente, pelas exigências da vida moderna, os odres já não são recipientes que se fabriquem no seu modo tradicional, sendo confeccionados como peças de artesanato com a característica de “souvenir” incorporando novos elementos em diversos materiais sintéticos, em substituição do couro, dando-nos uma ideia clara da funcionalidade deste “saco” de transporte. Alguns odres ou “borrachos” de maiores dimensões foram utilizados no comércio vinícola em território português até ao séc. XX pelos “borracheiros” que os transportavam às costas, carregados de mosto com destino às adegas, por vezes durante quilómetros, garantindo desta forma o abastecimento em locais de difícil acesso, como foi exemplo na Ilha da Madeira.

Recordemos um adágio português: “Não vás sem borracha a caminho e quando a levares não seja sem vinho”. O que é curioso é que na gíria, o significado de “borracho” acabou por adquirir uma conotação de alguém que está embriagado.

Fátima Aragonez (GEO - Núcleo de Demografia Histórica)

 

BIBLIOGRAFIA:

- Regimento dos Odreiros, Livro dos Regimentos dos Oficiais Mecânicos da cidade de Lisboa reformados por ordem do Senado, Duarte Nunes de Leão,1572 cap. XXXI

- AML-AH, Chancelaria da Cidade, Livro 5º de assentos do Senado Ocidental, doc. 164

- BLUTEAU, R., Vocabulário Português e Latino, Coimbra : Collegio das Artes da Companhia de Jesus : Lisboa : Officina de Pascoal da Sylva, 1712-1728.

- LANGHANS, F., As Corporações dos Ofícios Mecânicos. Subsídios para a sua História, com um estudo de Marcelo Caetano, 2 vols., Lisboa, Imprensa Nacional de Lisboa, 1943-1946.

- OLIVEIRA, E. F. de, Elementos para a História do Município de Lisboa, Typographia Universal, Lisboa, 1882, p. 240

- Museus da Madeira/Museu Etnográfico da Madeira, Plataforma Online, Região Autónoma da Madeira, Sec.Reg.Turismo e Cultura, Dir.Reg.Cultura, sítio da Internet: disponível em: https://museus.madeira.gov.pt/DetalhesObra/Index/980?tipo=OBJ 
[consultado em 18-02-2021]

 

 

 

1. Homem transportando um odre. PIROSMANI, Niko, pintura a óleo, 1912, Museu de Arte da Geórgia, Tbilisi
2. Painel da Adoração dos Pastores. LOPES, Gregório, pintura a óleo, 1539-1541, Museu Nacional de Arte Antiga, Lisboa
3. Pormenor de painel azulejar do interior da Igreja Convento Madre Deus, Museu Nacional do Azulejo, Lisboa
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