O Cutileiro

Substitutes for bread or right honorables the loaves & dividing the fish. Gillray, James, 1795. British Museum, Londres
Interior de uma oficina de forja. Beelt, Cornelis, 1655-1702. Haarlem, Frans Halsmuseum, Países Baixos
Talheres (garfo, faca, colher) do período renascentista. Artista Desconhecido, Paris, séc.XVI, Musée des Arts Decoratifs, Paris, França
Tesouras e moldes. 1868, Musée de la Coutellerie, Nogent, França
Pormenor de gravura “João o melhor rei de Portugal e Algarve”. Alemanha, 1641. Museu de Angra do Heroísmo, MAH.R.1190.216, Açores
Painel de Azulejo alusivo a uma refeição. Séc. XVIII. Palácio dos Guiões, Lisboa

Facas, tesouras, punhais, machados, cutelos, canivetes, navalhas e lanças são alguns instrumentos de corte e perfuração, elaborados pelo cutileiro. A arte da cutelaria, outrora trabalho do ferreiro, derivou do processo de especialização que os tempos impuseram, pertencendo às atividades manuais mais antigas da humanidade. Este labor reunia uma mistura de força, habilidade e delicadeza na preparação de ferramentas de corte ou utensílios, forjados a altas temperaturas, moldados pelas pancadas do martelo e por olhares precisos, que lentamente assumiam formas consoante a função. Na sua oficina de forja, o mestre cutileiro e o seu aprendiz trabalhavam os metais com o auxílio do fogo e de ferramentas de impacto.

Este artesão reunia o metal que tivesse ao dispor “reciclando-o”, juntava artefactos já sem utilidade como pregos, dobradiças entre outros tantos e moía em conjunto, fundindo por camadas. Para além da fornalha, utilizava instrumentos imprescindíveis: foles de couro [que serviam para soprar os metais] bigorna, bancada com torno, limas, rodas de polimento, martelo, pinças ou tenazes que seguravam o metal incandescente.

O trabalho com o ferro e o fogo era um trabalho árduo, onde o risco estava presente, mas que desde os primórdios da humanidade assume uma importância crucial no quotidiano das pessoas nas cidades e campos, o que conferia algum sentimento de respeito a quem dele se ocupava.

Habitualmente as oficinas dos artesãos que lidavam com o ferro e o fogo, localizavam-se o mais possível longe das zonas habitacionais, por razões de segurança, pelo facto do fogo ser um elemento perigoso, e também por proteção a ruídos intensos. Não seria fácil trabalhar num ambiente com fornalhas a altas temperaturas com o som contínuo das pancadas na bigorna. Neste ambiente, podemos imaginar as mãos dos cutileiros, mesmo dos mais habilidosos, as mesmas que esculpiam com detalhe, também conservavam as marcas difíceis de evitar, com cortes ou queimaduras, calejadas pelo uso do martelo.

Ofício mecânico de corporação medieval, os cutileiros anexaram-se ao padroeiro São Jorge, vitorioso mártir de popular e tradicional devoção, de fortaleza celestial, valente cavaleiro que de tão poderoso conta a lenda que venceu o dragão. Lenda que associa o mártir ao elemento fogo, cujo culto terá entrado em Portugal no século XII através de cruzados ingleses. Mas a popularidade do santo em Lisboa foi mais notória a partir do final do século XIV ao ser integrada a imagem do santo no cortejo do Corpo de Deus, no qual passou a desfilar a cavalo, bem como a atribuição do topónimo São Jorge ao castelo da cidade. A sua bandeira na Casa dos Vinte e Quatro era a de maior destaque e representatividade na procissão e integrava maioritariamente profissões ligadas ao trato de metais, à lida do ferro e fogo.

Para ser mestre cutileiro o oficial candidato teria de se submeter a exame, pagando o valor de 300 réis (1771) e o seu regimento quinhentista obrigava a que ele soubesse: “mui bem esmerar o aço” competindo-lhe fazer: “um punhal polido, uma ferramenta para uma escrevaninha, uma mesa de cutelos, um manchil [instrumento de carniceiro] um par de facas de pares, obra latoada, uma adaga [arma curta pontiaguda que se trazia à cinta da parte oposta à espada]; umas tesouras de alfaiate e outras de sapateiro, um navalhão [navalha grande ou facão de caçador], um trinchete [faca] de sapateiro”. Na sequência de uma petição dos próprios em 1641, acrescentou-se a este exame a produção de “ferramentas de cirurgia” e “ferros de lança”, justificadas com o argumento de uma maior necessidade “para ocasião das guerras e melhor aviamento das partes”.

Estes artesãos, para além de dominarem as técnicas de forja e moagem, tinham de saber como combinar materiais, ter noções de geometria, proporção e distribuição de peso e ergonomia. Os artesãos particularmente talentosos podiam ser designados como cutileiros da corte, como o exemplo de Luís Dias, natural de Bucelas, termo de Lisboa, cujo alvará de 5 de Maio de 1645, o mandou servir a El Rey.

A arte de forjar o ferro conservava alguns ”segredos”, a têmpera ou “a rijeza e consistência que se dá ao ferro ou aço, com certos artifícios” considerava-se um dos segredos dos cutileiros. Segredo ou crença, a “lenda da boa água de Guimarães” associava-se às características da água, que se acreditava serem únicas e fazerem a diferença na produção das lâminas de corte. Curiosidade ou coincidência, é o facto de, os locais com grande tradição da cutelaria no nosso país estarem nas proximidades de zonas termais.

As lâminas em “damasco” eram muito cobiçadas, pela arte e engenho no processo, atribuía-se-lhes qualidades lendárias e serviam os gostos mais elegantes. Dos mais simples aos mais requintados, os cabos das peças produzidas poderiam ser ornamentados com diversos materiais: madeira, couro, chifre, alguns preparados por outros ofícios subsidiários como os cabeiros. Luxos estes que saciavam as classes mais endinheiradas.

Dominar a cutelaria, na produção de utensílios, ferramentas manuais ou armas, começou a significar poder, talvez por isso ainda hoje o adágio “ter a faca e o queijo na mão” se atribua a uma situação em que alguém tem amplos poderes ou todos os meios para agir. Sendo as lâminas alguns dos produtos mais cobiçados, tornaram-se ferramentas inseparáveis do ser humano e vitais para a sua sobrevivência. Utilizadas em várias atividades humanas, tornaram-se o prolongamento das mãos que lhes dão uso, servindo para picar, cortar, trinchar, furar, dilacerar, rasgar, dependendo do intento da mão que as segura, para o bem ou para o mal, no ataque ou defesa pessoal, na caça, na agricultura, na pastorícia, na saúde em técnicas cirúrgicas e na higiene, na confeção de vestuário ou como utensílios de cozinha.

Na Idade Média não era usual a utilização de talheres às refeições. A colher [de madeira] e a faca eram utensílios apenas utilizados quando o manejo com as próprias mãos não era suficiente. Saboreava-se a refeição utilizando habitualmente as mãos e os dedos, fossem eles grosseiros ou delicados. A faca de pontas afiadas era um importante instrumento multiusos, que por vezes se utilizava em par, enquanto uma segurava o alimento a outra cortava ou picava para o levar à boca; servia também para limpar ou palitar os dentes dos comensais no final das refeições! Em ambientes festivos mais nobres, começou a ser frequente os convidados transportarem no bolso um estojo pessoal com o conjunto para comer.

A tendência do uso de talheres e particularmente do garfo às refeições, ganhou a sua força com Catarina de Médici, uma nobre italiana do século XVI, rainha consorte que levou para França este hábito como forma de enfatizar o seu poder na monarquia francesa. De aceitação muito demorada e pouco unânime, o garfo encontrou paulatinamente adeptos nas camadas mais privilegiadas da sociedade que encararam o seu uso individual como um bem de higiene. Adquirir um faqueiro em meados do séc. XVI só estaria ao alcance dos mais nobres, que teriam de despender 240 reais por um conjunto de 12 garfos e 12 facas. Ainda neste período uma tesoura de alfaiate custava 100 reais, um punhal 60 reais, um cutelo de cozinha rondava os 40 reais; uma faca de mesa 15 reais e um canivete com cabo de ferro 8 reais.

Só no final do séc. XVII e início do séc. XVIII é que os conjuntos de cutelaria começaram a ter procura, como elementos de decoração e utilização em jantares, surgindo também as primeiras referências a garfos de 3 e 4 dentes, generalizando-se o seu uso em meados de setecentos. Os gestos ancestrais de partir os pães e outros alimentos à mesa, de levar os ossos à boca para os chuchar e roer, vão lentamente dando lugar ao uso individual de talheres. Comer sem sujar os dedos passa a ser uma regra que, quando quebrada, o decoro e a civilidade à mesa recomendava “não limparemos à toalha nem a algum bocado de pão, como muitos fazem, mas ao guardanapo”.

Algumas peças feitas pelos cutileiros exigiam uma colaboração mais próxima com outros artífices aos quais mantinham uma forte ligação, como os bainheiros, que faziam as bainhas [forro, estojo] para os seus instrumentos de corte. Para fazer bainhas, utilizaram-se vários materiais ao longo dos tempos, podendo ser de madeira, couro ou metal. Não eram apenas meros acessórios que se prendiam ao cinto, a sua verdadeira utilidade era proteger a lâmina contra a ação do tempo e facilitar o seu transporte, pelo que não era aconselhável carregar uma faca no bolso ou à cintura sem proteção.

Em Lisboa, arruaram-se os cutileiros e bainheiros na Rua da Cutelaria, por determinação régia de 19 de Maio de 1575. Ambos os ofícios se opunham à intromissão de outros no local, e na sequência destas preocupações, enviaram petições conjuntas ao senado, cujos despachos favoráveis seguiram no sentido de limitar os alugueres a outros mesteres e alargar o dito arruamento em ambas as bandas, para que não lhes faltasse acomodação, beneficiando ambos desta proximidade.

Apesar dos regimentos determinarem os limites de cada ofício, eram frequentes as contendas sobre a ultrapassagem dos mesmos, o que gerava queixas: dos cutileiros porque os barbeiros (cabeças de sua bandeira) concertavam e amolavam objetos que não faziam; dos espadeiros porque acusavam os cutileiros de usurparem para seu regimento a confeção de adagas...

Para além da habitual dispersão pela urbe, a referência a cutileiros que identificámos em Lisboa concentrava-se na freguesia de Santa Justa, mais precisamente na Rua da Cutelaria [a rua que então se repartia pelas freguesias de Santa Justa e de São Nicolau, subjaz no espaço atual entre os quarteirões norte da Rua dos Douradores e da Rua dos Fanqueiros] Neste espaço, observámos que em 1693 havia referência a 13 cutileiros, número que triplica em menos de uma década. Em documentação mais tardia, após o terramoto, encontramos referências também na Encarnação e Mercês, pela necessidade de se reorganizarem territorialmente. Atualmente a referência às artes do cutileiro já não se reflete nas designações toponímicas da cidade.

A cutelaria artesanal é hoje considerada uma arte por criar peças únicas de autor, cada vez mais refinadas e precisas, cobiçadas tanto pelo seu poder de corte como pela beleza das suas formas.

Sabia que...

é comum alguns países do mundo terem associado uma lâmina à sua cultura e à sua história? E que o canivete português, tornou-se uma peça reconhecida e produzida artesanalmente até aos dias de hoje?

Fátima Aragonez (GEO - Núcleo de Demografia Histórica)

 

BIBLIOGRAFIA:

 

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SIQUEIRA, Pe D. João de N. Srª da Porta - Escola de Politica ou Tractado pratico da Civilidade Portuguesa (…) Cap. VIII, Porto, 1786, p.118

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