Fugir da prisão, em Lisboa na segunda metade do século XV

Casa da Relação e cadeia do Limoeiro. Pormenor da Vista Panorâmica de Lisboa (c. 1563-1570), Universidade de Leiden.

Num estudo ainda hoje de referência sobre justiça e criminalidade em Portugal durante o período compreendido entre 1459 e 1481, Luís Miguel Duarte afirmou, com base nas cartas de perdão então concedidas, que as prisões medievais eram autênticos “passadores”. Só não fugia quem não queria. E o que as fontes – as cartas de perdão concedidas durante o reinado de Afonso V (1438-1481) – também nos revelam é que as prisões de Lisboa não constituíam uma excepção a esta regra, ainda que a documentação ateste apenas uma trintena de casos durante esses 43 anos. Claro que o número de evasões pode ter sido muito superior, já que as cartas de perdão que chegaram aos nossos dias foram apenas as que receberam resposta favorável do rei. Além disso, é possível que nem todas tenham sido exaradas nos livros de chancelaria.

Tratando-se da principal cidade do reino, da mais vasta e da mais populosa, Lisboa dispunha de diversas prisões: a do castelo de S. Jorge, de onde seria – a avaliar pela inexistência de fugas documentadas – mais difícil escapar, a casa do “tronco”, a prisão da Judiaria e a da Mouraria e, a mais importante e maior de todas, a do Limoeiro, o antigo paço a par de S. Martinho. A estas somava-se ainda a “prisão da corte” que, tal como a corte propriamente dita, tinha um carácter itinerante e que, sempre que o rei se encontrasse na cidade, ficava instalada, segundo se pensa, também naquele antigo paço régio.

A avaliar pela documentação disponível, a permeabilidade das prisões lisboetas parece, de um modo geral, ser o resultado, por um lado da falta de vigilância e, por outro, das condições e do estado de conservação dos edifícios onde estavam instaladas, mas também dos instrumentos utilizados para manter os presos no seu interior.

E ainda que nem sempre, como no caso do escudeiro Rui Gomes (a. Julho de 1473), seja possível perceber como se deu a fuga, um breve olhar sobre os casos documentados mostra-nos que a maioria dos evadidos se aproveitou do facto de as portas da prisão se encontrarem abertas. Foi isso que fizeram, entre muitos outros, o judeu Abraão (a. Março de 1451); o mouro-forro Belaziz (a. Agosto de 1454); ou o escudeiro João do Porto, com diversos companheiros (a. Setembro de 1455). Como explica Luís Miguel Duarte, os carcereiros “preocupavam-se pouco com as portas, as quais, de resto, eram obstáculos fáceis de transpor” e confiavam mais nas correntes e nas grilhetas. Ainda assim, o mau estado e a qualidade de alguns desses instrumentos deixava muito a desejar, como se deduz do caso do escudeiro Gomes Anes (a. Julho de 1473) que, como o próprio afirmava, punha e tirava quando queria as grilhetas que tinha nos pés. Além disso, eram relativamente fáceis de abrir, como nos dá conta a carta de perdão atribuída a Rui da Tenda, datada de 1452, Abril, 15. Este caso é particularmente curioso, pois revela-nos que depois de se desembaraçar desses ferros, este indivíduo conseguiu, com outros companheiros, entre os quais um certo Martim Afonso e com a ajuda de alguns machados, alargar as frestas das “privadas” da prisão, por onde desceram por umas cordas para o exterior do edifício, pondo-se, assim, em fuga. E porque essa seria, provavelmente, uma zona menos vigiada, as privadas parecem ter sido uma via relativamente comum para escapar, pois foi também por aí que, antes de Julho de 1462, se evadiram João Preto e outros três indivíduos, bem como Ana Vasques, antes de Janeiro de 1452.

Abrir buracos nas paredes era outro dos métodos para alcançar a liberdade. Maria Gonçalves, por exemplo, conseguiu fazer uma abertura suficientemente larga na parede da cela, por onde fugiu (a. Março de 1439), um método usado igualmente por um grupo de presos que se encontrava detido no Limoeiro e que para isso quebraram “ferros e prisões e rompendo portas e paredes” (a. Março de 1480).

Quando solicitavam ao rei uma carta de perdão ou, em alternativa, uma carta de segurança – documento que lhes permitia aguardar pelo julgamento em liberdade, como um habeas corpus –, os fugitivos tinham a preocupação de sublinhar, porque isso seria uma atenuante, o facto de não terem danificado as fechaduras, as correntes e as grilhetas, ou mesmo as portas e paredes da prisão, para empreenderem a sua evasão. Assim fizeram, por exemplo, Pedro Afonso (a. Outubro de 1440); e Álvaro Teixeira (a. Junho de 1462). Mas como nem sempre se conseguiam libertar das correntes e argolas que lhes limitavam os movimentos, muitos não tinham outro remédio a não ser escapar com essas correntes nos pés. Porém, porque sabia que isso poderia pesar na decisão de lhes ser ou não concedida carta de perdão, alguns tinham o cuidado de as devolver ou deixar num lugar onde fossem facilmente encontradas. Rui da Tenda (a. Abril de 1452), por exemplo, deixou-as na Igreja de Santa Catarina; João Vicente (a. Junho de 1473) deixou-as na Igreja de S. Brás; ao passo que o pedreiro João Afonso as mandou entregar na prisão de onde escapara dias antes (a. Maio de 1455).

Ainda que as fontes consultadas nem sempre refiram a altura do dia em que a fuga ocorreu, parece que boa parte dos episódios nelas documentado teve lugar durante a noite, período em que a vigilância afrouxava. São os casos das fugas de Ana Vasques (a. Janeiro de 1452), de Nuno Martins (a. Agosto de 1456), e de Pedro Machado (a. Março de 1480).

E se uns escapavam sozinhos, outros faziam-no acompanhados. O barbeiro João Preto, por exemplo, pôs-se em fuga com três outros presos; tal como o escudeiro Gomes Anes, que antes de 1455, se evadiu na companhia de João Lourenço; e também um outro Gomes Anes, mas este um alfaiate de profissão, se escapou da prisão, antes de Março de 1463, acompanhado de vários homens. Também Belaziz, a avaliar pela proximidade das datas das cartas de perdão (ambas de Agosto de 1454), parece ter sido acompanhado na fuga por um outro mouro chamado Azeite. Numa certa ocasião, antes de Junho de 1455, de uma só vez terão fugido da prisão do Limoeiro, dez indivíduos!

Por vezes, os foragidos contavam com ajuda externa. Relembre-se o caso de uma mulher – cujo nome não é mencionado, excepto que havia sido casada com um tal João do Campo –, que foi ajudada a escapar pelos filhos de Pedro Lourenço de Ferreira e ainda pelo escudeiro Tristão Lourenço, que por esse motivo acabou preso. E como este caso bem demonstra, não eram apenas os homens que se evadiam. Que o digam, entre outras, Teresa Gomes (a. Fevereiro de 1440); ou Leonor Martins, que se limitou a “somente sayr por a porta” da casa do tronco (a. Março de 1469).

Não se pense, porém, que todas as fugas das prisões lisboetas eram bem-sucedidas. O caseiro João Aires e alguns companheiros, antes de Junho de 1480, bem tentaram, mas porque se viram obrigados a arrombar uma porta, o barulho alertou os guardas que rapidamente puseram fim à tentativa, “em tal maneira que nom fugirom nehuuns pressos”.

Mas enquanto uns escapavam da prisão, outros, em resultado dessas evasões, iam ocupar o seu lugar. Muitas vezes a culpa pela fuga era atribuída aos carcereiros e à sua incúria. Que o digam Mem Rodrigues, carcereiro da prisão de Lisboa, preso sob a acusação de culpa na fuga, em Abril de 1455, de dez indivíduos que se encontravam à sua guarda; ou Francisco Anes, seu antecessor, considerado responsável pela fuga de Ana Vaz. E se em alguns casos não é possível descortinar se os carcereiros tiveram, de facto, um papel, ainda que meramente passivo, na evasão, outros há em que é impossível não lhes apontar, pelo menos, alguma falta de zelo. Veja-se o exemplo de João Gonçalves e do seu cúmplice João Nunes, que conseguiram escapar da prisão porque não tinham sido postos a ferros por Gonçalo Garcia, substituto do carcereiro, e que pela sua negligência acabou preso.

Miguel Gomes Martins

BIBLIOGRAFIA

Luís Miguel Duarte, Justiça e Criminalidade no Portugal Medievo (1459-1481), Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian / Fundação para a Ciência e Tecnologia, 1999.

FONTES

Arquivo Nacional – Torre do Tombo, Chancelaria de D. Afonso V, Livros 1, 3, 5, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 15, 19, 20, 26, 28, 30, 31, 32 e 33

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