O Confeiteiro

Natureza Morta. Josefa de Óbidos, Biblioteca Municipal Anselmo Braamcamp Freire, 1676. Um dos temas de predileção da pintora Josefa de Óbidos (1630‑1684) foram as Natureza morta sobre doces e conservas de fruta
Juan van-der-Hamen, 1627, National Gallery of Art, Washington, D.C.
Natureza morta com bolos, Josefa de Óbidos, 1660-1670, Museu de Évora
Receita de Fartinhos, caderno de receitas do convento das Salésias, entre 1784 e 1897, Torre do Tombo
Confection de la confiture, gravura por Wolf Helmhardt Hohberg, 1695
Hausbüchern der Mendelschen. Amb. 317b.2° Folio 43 verso (Mendel II)
Confeitaria Nacional em 1872, gravura. 1941. Portugal, Eduardo. Arquivo Municipal de Lisboa
Planta de Lisboa antes do Terramoto de 1755. Pormenor. Arquivo Municipal de Lisboa

Amêndoas marquesinhas, confeitos de rosas, manus christis, drageias, massapão e alfenim, frutas cobertas e flores (rosas e flor de laranjeira), ladrilhos de marmelada e açúcar rosado eram algumas das iguarias que faziam da rua dos Confeiteiros o local mais “doce” e aromatizado de Lisboa na Época Moderna.

Também conhecida como a Confeitaria, desde o segundo quartel do século XVI que a rua estava estrategicamente localizada no centro cívico e comercial de Lisboa, entre o Paço da Ribeira e a opulenta rua Nova. O renque de colunas que sustentavam os prédios da rua formavam galerias sob as quais se abriam as lojas de mestres confeiteiros, anunciando em cada ombreira, com as inconfundíveis balanças em cobre, que ali se vendia açúcar. No seu interior, oficiais e aprendizes preparavam e dispunham em tabuleiros as doces especialidades que diariamente vendiam aos lisboetas.

As civilizações da Antiguidade conheciam a doçaria à base de mel, frutos secos e farinhas, que consumiam sobretudo em banquetes e ocasiões cerimoniais. Na Idade Média, o mel continuou a ser o principal adoçante com que se faziam as “viandas de leite”, as conservas e doces de fruta, os famosos fartéis e alféloas. O açúcar, difundido entre nós pela civilização árabe, já era usado no fabrico de doçaria e de conservas por confeiteiros régios, alfeloeiros e em mosteiros e conventos, mas com alguma parcimónia. Também apreciado pelas suas propriedades terapêuticas, o açúcar rapidamente se tornou imprescindível nas boticas do reino.

A partir do século XV, a difusão da cultura de cana sacarina trouxe-o em abundância a Lisboa chegando em remessas provenientes da ilha da Madeira, que era o mais apreciado, das Canárias, da ilha de São Tomé e do Brasil.

Doces e sofisticadas iguarias há muito que marcavam presença na mesa dos reis, refletindo a documentação oficial o elevado consumo de doces e conservas, de avultadas encomendas e dos mestres confeiteiros portugueses e estrangeiros que, por exemplo, serviram na corte de D. João III e de D. Catarina de Áustria.

Na Lisboa Quinhentista, a abundância de açúcar elevara a arte da confeitaria a uma nova dimensão - mais variada e complexa e menos exclusiva de reis, da nobreza e das elites; o grupo de artesãos de confeitaria foi crescendo e a generalidade da população passou a ter mais acesso a gulodices.

Sinal de prestígio e valor social, tornara-se também simbólico nas relações interpessoais e institucionais “o que os doces, confeitos e conservas ganham no quotidiano português ultrapassa o seu uso à refeição, passando a oferta de “mimos” entre familiares e amigos” (Gomes, 2014:223). Assim o praticaram as irmandades oferecendo doces aos participantes das procissões, e o Senado que por tradição oferecia aos reis durante as festas de Santo António condeças [cesto com tampa feito de vime] “recheadas de bolos e de pastilhas de cheiro, cousinhas de alcorce e outras galanterias” [Sequeira 1922:414].

O açúcar entrara definitivamente no quotidiano português e também nos ambientes domésticos onde já se aplicavam técnicas de conservação de frutas e legumes em açúcar (como abóboras, diacidrão, pêssegos) e doces de frutas (como a perada, cidrada, marmelada, pessegada) transitando muitas destas receitas da oralidade para os primeiros livros de culinária, manuscritos como o Livro de Cozinha da Infanta Dona Maria de Portugal (meados século XVI), ou impressos como a Arte de Cozinha de Domingos Rodrigues (1680).

O ofício de confeiteiro ganhou vulto no panorama artesanal de Lisboa e a partir de 1533 determinou-se o seu arruamento na rua do Saco, onde os mestres passaram a trabalhar e a habitar, apesar de alguma resistência inicial. Esta rua era um prolongamento da antiga rua dos Ferreiros, localizada entre o largo do Pelourinho Velho e o Arco dos Pregos até ao Paço da Ribeira e que em 1568 já era conhecida como a rua dos Confeiteiros [Chancelaria de D. Sebastião e D, Henrique, Liv. XXIII, fl. 63, 1568]. Vários elementos, para além da produção de confeitaria, a distinguiam das restantes ruas: as colunatas que formavam galerias; os “poços de agua doce belíssima” em pelo menos uma loja, sendo costume, segundo o autor anónimo, de quem ia às lojas comer gulodices beber daquela água gelada que era servida em pucarinhos de barro “não querendo os moradores outra coisa” [Descriptiomn de la Ville de Lisbonne, 1730: 44-45]; e algures na rua, o nicho-oratório com a imagem de N. Sra. da Oliveira, a padroeira da irmandade dos confeiteiros.

Visando a preservação e vigilância do ofício e a qualidade dos produtos, as primeiras regras de procedimentos remontam ao fim do século XV, versando sobre a venda de confeitos e a proibição de açúcar de má qualidade (AML-AH, Chancelaria da Cidade, Livro de posturas antigas, doc. 252, f. 85v e doc. 58, f. 25v). Estas posturas avulsas foram complementadas a partir de 1572 com a redação do regimento dos confeiteiros que não só definia a eleição dos representantes, o controlo da hierarquia através de exames e a validação da aprendizagem, como a limitação do número de lojas e o controlo de qualidade da doçaria produzida. Documento que só seria atualizado em 1768.

A aprendizagem não poderia ser inferior a nove anos findos os quais o mestre podia abrir uma loja, mas não sem antes provar ser capaz de executar várias categorias de doces e a aplicação de técnicas, incluindo o “cobrir peras e abóboras, derrabar erva-doce, fazer grangeia [doces de confeitinhos], massapão e alfenim, açúcar queimado, marmeladas e açúcar rosado e tudo o mais que os juízes quiserem” [AHML, Regimento dos Confeiteiros]. Às mulheres estava interdita a aprendizagem oficial, embora as mulheres viúvas pudessem continuar o negócio e manter a loja de confeitaria.

Como qualquer agremiação da Época Moderna, também a dos confeiteiros desenvolveu uma espiritualidade corporativa. Integravam a Casa dos Vinte e Quatro com a bandeira do arcanjo São Miguel (1539) passando no reinado de D. João IV para a bandeira de São Gonçalo, patrono dos confeiteiros. Pertenceu-lhes a ermida de Santa Apolónia que, curiosamente, era a padroeira dos dentistas e a quem apelavam os que tinham dores de dentes (Carvalho, 1936:5).

A constituição de uma irmandade sob proteção de um orago, votivo a Nossa Senhora da Oliveira, com sede na primitiva ermida da Oliveira, localizada na Rua Nova dos Ferros e no adro da Igreja de São Julião pode remontar a 1563. Após a destruição da ermida pelo terramoto de 1755, foi reconstruída na Rua de São Julião (a partir de 1768) passando também a reunir aí a corporação dos confeiteiros, com representação na Casa dos Vinte e Quatro reunidos sob a Bandeira de Nossa Senhora da Oliveira.

Como seria o espaço interior de uma tenda de confeiteiro? Dividia-se entre o expositor dos doces e também local de venda e uma área reservada à produção e armazenamento onde estaria a matéria-prima e toda a utensilagem necessária à arte da doçaria. O imprescindível fogo e os recipientes de vários tamanhos, incluindo almofarizes, bacias, tachos e tigelas de cobre, balanças, caixas de madeira, escumadeiras, bacias de fartéis e bacias grandes para fazer confeitos [A.N.T.T., Inquisição de Évora, proc. 4022, cit. Braga 2014:179]. Na área de venda e de exposição, tomando como exemplo a loja de uma confeiteira de Elvas, no espaço onde vendia ao público tinha “quinze ou dezasseis potes da Índia com ginja, marmelada flor […], caixas de abóbora, pera, escorcioneira e umas marmeladas e confeitos” [Braga, idem].

Lojas semelhantes terão sido frequentadas por visitantes estrangeiros que ilustraram em crónicas e cartas as suas impressões sobre aquela rua. Os cavaleiros venezianos Tron e Lipomani (1580) enviados pela corte de Veneza para cumprimentar Filipe II, maravilharam-se com as lojas cheias de doces e de frutas secas e cobertas, primorosamente preparadas, referindo ainda a importância deste negócio não só pelo consumo na cidade, como pela exportação para todo o império ultramarino (Herculano, vol. VI, 124).

As estatísticas históricas espelham também essa importância no quadro das atividades económicas de Lisboa. No conjunto da produção oficinal de confeitaria, em mosteiros e conventos e, apesar das sucessivas proibições, em ambiente doméstico, envolvia centenas de pessoas. Em 1552 existiam 30 tendas de confeiteiros, onde trabalhavam 150 pessoas. Nas épocas festivas antes do Natal até ao dia de Reis, 30 mulheres estavam autorizadas a vender muito próximo da rua dos Confeiteiros – na Ribeira e no Pelourinho Velho - gergelim, pinhoada, nogada, marmelada, laranjada, sidrada, fartéis, e conservas que dispunham sobre “suas mesas cobertas de toalhas e mantéis muito alvos”; e outras 50 mulheres tinham como ocupação fazer marmelada, açúcar rosado e laranjadas “que vendem às pessoas que vão à Índia e Guiné” [Brandão, 1552: 208].

Em 1620, frei Nicolau de Oliveira contou 54 confeiteiros e mais sessenta mulheres, além de outras moças, que produziam conservas e doces “pera vender, assi em suas casas, como pelas Ruas, fora da Confeytaria” (Oliveira 1620:95).

O mercado era vasto e a venda ambulante era uma forma de vida para muitas mulheres. O que nem, sempre foi do agrado da corporação, conforme ilustra uma petição de 1640 segundo a qual 200 mulheres de “má fama” sem temor vendiam doces pelas ruas “sem pesos e falsificados e por casas de jogo sem nisto poder haver remédio algum e por parte desta cidade os confeiteiros sofrem muito” [Langhans 1943: 569]. Providências foram tomadas contra estas vendedoras, pois cinco anos depois o Senado ordenava por decreto que as mulheres que vendessem doces pela cidade o poderiam continuar a fazer, devendo ser-lhes entregue as licenças que indevidamente lhes tinham sido retiradas [AML-AH, Chancelaria Régia, Livro 1º de consultas e decretos de D. João IV, f. 278 a 278v].

Um século depois, em 1752, o Senado daria o aval à venda ambulante de bolos pobres de açúcar e de manteiga, bolos da Esperança, manjar branco, tremoços de massa, toucinho-do-céu, doces de ovos e de açúcar, alcorças, biscoitos, costas e bolos torrados. Aos confeiteiros ficava reservado o monopólio dos doces de amêndoas e das frutas em pasta, em doce e cobertas, além do pão de ló [Oliveira 1906: tomo XV, 375-376].

Em 1831 o negócio e a arte da confeitaria já apresentavam outras características. Neste ano, a corporação do ofício de confeiteiro queixava-se ao intendente geral da polícia de que uma francesa, Madame Moreau, anunciava na Gazeta a venda ao público “de amêndoas e mais doces da semana santa vindos de França” invocando os confeiteiros para que o rei tomasse uma “providência paternal contra a ruína que os ameaça” [Ministério do Reino, mç. 708, proc. 1]. E ameaçava, pelo menos a concorrência de confeiteiros e conserveiros estrangeiros, sobretudo franceses e italianos que se instalaram com cafés e confeitarias em Lisboa ao longo dos séculos XIX e XX.

Como nota final, a confeitaria mais antiga de Lisboa, a Confeitaria Nacional foi fundada em 1829 por Balthazar Roiz Castanheiro num dos bairros mais emblemáticos da capital, o Rossio, onde ainda hoje se mantém.

Delminda Rijo (GEO - Núcleo de Demografia Histórica)

 

BIBLIOGRAFIA

Fontes manuscritas

AML-AH, Chancelaria da Cidade, Livro de posturas antigas, doc. 252, f. 85v e doc. 58, f. 25v.
AML-AH, Chancelaria Régia, Livro 1º de consultas e decretos de D. João IV, f. 278 a 278v. 
IANTT, Chancelaria de D. Sebastião e D. Henrique, Liv. XXIII, fl. 63.
IANTT, Ministério do Reino, mç. 708, proc. 1.
Descriptiomn de la Ville de Lisbonne, 1730.
https://books.google.pt/books?id=hrdRAAAAcAAJ&pg=PP13&hl=ptPT&source=gbs_selected_pages&cad=3#v=onepage&q&f=false

Fontes impressas

BRANDÃO (de Buarcos), João - Tratado da Majestade, Grandeza e Abastança da Cidade de Lisboa, na 2.ª metade do século XVI: (estatistica de Lisboa de 1552). Lisboa: Livraria Ferin, 1923.

Estudos

BRAGA, Isabel Drumond – “Confeiteiros na Época Moderna: Cultura Material, Produção e Conflituosidade” in Ensaios sobre património Alimentar Luso-brasileiro. Coimbra: Universidade de Coimbra, 2014, pp. 165-192.
BUESCU, Ana Isabel – “Aspectos da mesa do rei entre a Idade Média e a Época Moderna” in Ensaios sobre património alimentar luso-brasileiro. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2014, pp. 141-164.
CARVALHO, Augusto da Silva - Dentes, dentistas e odontólogos. Sep. Revista Portuguesa de Estomatologia, 1936.
GOMES, João Pedro -  “Uma doce viagem: doces e conservas na correspondência de D. Vicente Nogueira com o Marquês de Niza (1647-1652)”, in Ensaios sobre património Alimentar Luso-brasileiro. Coimbra: Universidade de Coimbra, 2014, pp. 213-251.
HERCULANO, Alexandre – Opúsculos, vol. VI, Lisboa : Viúva Bertrand, 1873-1908.
LANGHANS, F. - As Corporações dos Ofícios Mecânicos. Subsídios para a sua História, com um estudo de Marcelo Caetano. 2 vols, Lisboa: Imprensa Nacional de Lisboa, 1943-1946.
SEQUEIRA, Gustavo de Matos - Depois do Terramoto, vol. III, Coimbra, 1922.

Símbolo de acessibilidade à Web

Site optimizado para Firefox 2.0.0.10, IE 7.0 e IE 6.0
Todos os conteúdos deste site são propriedade da CML ou das entidades neles identificadas.
Utilização sujeita a autorização da Câmara Municipal de Lisboa · © 2007
Desenvolvido por CML/DMAGI/DNT