D. Manuel I e a “peste” de 1506 em Lisboa

Enterro das vítimas. Detalhe de The Chronicles of Gilles Li Muisis, (1272-1352), Bibliothèque Royale de Belgique, MS 13076-77, f. 24v.

 

Embora não tão letais quanto as pestes medievais, designadamente a pandemia de 1348, nem por isso os surtos ditos de “peste” do século XVI deixaram de ser particularmente mortíferos, como bem se viu em Lisboa entre 1505 e 1507.

A maior parte dos autores associa a eclosão deste surto à chegada a Lisboa, ainda em 1505, da embaixada enviada por D. Manuel I a Roma (Papa Júlio II) e liderada pelo arcebispo de Braga, D. Diogo de Sousa, em cujos navios vinham já alguns indivíduos infectados e cujo desembarque na capital desencadeou um surto tifóide que, no entanto, em Dezembro não teria feito ainda um grande número de vítimas, já que nesse mês o rei continuava em Lisboa, onde assistiu à apresentação, no paço da Ribeira, de um auto de Gil Vicente.

Assim, as primeiras notícias desta epidemia remontam apenas a Fevereiro de 1506 e sugerem já a existência de um elevado número de contágios e, muito provavelmente, de vítimas mortais. E tudo indica que, numa fase inicial, a forma de lidar com a doença e de evitar que se propagasse consistia no internamento compulsivo dos doentes numa “casa ordenada”, decerto que para tentar circunscrever os casos a um só local, cuja localização as fontes não referem. Porém, talvez devido ao aumento exponencial dos casos e à impossibilidade de instalar todos os doentes num mesmo local, que rapidamente se deve ter tornado exíguo, no dia 4 de Fevereiro de 1506, D. Manuel – que tinha partido de Lisboa ainda em finais de 1505 e que, por essa altura, deambulava entre Almeirim e Abrantes –, determinou que, quem assim o entendesse, poderia optar por ser tratado na sua própria casa.

O aumento do número de casos, obrigou também o rei, através de carta datada de 11 de Março seguinte, a tomar um conjunto de medidas mais musculadas e inspiradas nas que haviam sido tomadas anos antes na cidade italiana de Génova para conter um surto semelhante. Assim, em carta enviada ao corregedor e aos vereadores, procurador e procuradores dos mesteres da Câmara de Lisboa, auscultava-os quanto à possibilidade de se “despejar” a cidade por alguns dias, isto é, evacuar Lisboa, tal como havia já sido feito, anteriormente, em Évora. De acordo com a proposta do monarca, a população lisboeta deveria ser instalada nos campos, em lugares amplos e previamente definidos dentro do termo da cidade, mas nunca nas povoações da periferia onde, tudo o indica, não havia ainda casos registados; dever-se-ia evitar aglomerações; as portas da cidade deveriam ser guardadas de dia e de noite, de forma a travar quem nela quisesse entrar; esta medida deveria durar o tempo que fosse considerado necessário. Antecipando-se à medida, muitos eram os que, por livre e espontânea vontade, abandonavam a cidade procurando fugir da doença. Um dos que o fizeram foi o alemão Jurgen Polhe, que deambulou por Cacilhas, Almada, Lumiar, Alvalade e Santa Maria da Luz em busca de um local seguro.

A Câmara lisboeta, pouco ou nada inclinada a acatar a proposta do rei, rejeitou-a de imediato, argumentando, de forma vaga, com os “inconvenientes” que isso iria provocar. O facto de o executivo camarário não ter especificado quais os transtornos que a evacuação iria causar à cidade levou a que D. Manuel, no dia 20 de Março voltasse a insistir na necessidade de implementar essa medida, sublinhando que, “pello bem unyversall que da saude della [de Lisboa] se comsegue a de todo o reyno” e que, por isso, estava determinado em pô-la em prática, mesmo contra a vontade da Câmara. Todavia, antes de tomar qualquer atitude mais musculada, solicitava às autoridades municipais que, de forma explícita, enumerassem quais os inconvenientes a que se referiam quando, em resposta à sua missiva anterior, recusaram evacuar a cidade.

No mesmo dia, mas numa outra carta onde refere que “dano da pestelença da cidade vay em mayor crecimento”, o monarca determinou também o encerramento das escolas “dos moços que aprendem a ler e a screver”, de forma a evitar ajuntamentos, uma medida que deveria vigorar até ao fim da “peste”, tal como a mobilização das ordenanças, cujo recrutamento tinha sido iniciado em Fevereiro e que deveriam também cessar até ordem em contrário.

A documentação disponível nada mais regista sobre as medidas propostas ou ordenadas pelo rei – e muito menos acerca da sua implementação –, mas é de supor que as mais simples, como o encerramento das escolas, tenham sido postas em prática. Pelo contrário, a medida mais difícil de executar, ou seja, a evacuação da cidade acabou, tudo o indica – as fontes disponíveis mostram-nos uma cidade cujo dia-a-dia, não parece ter sofrido grandes alterações –, por não ser posta em prática, certamente que devido à resistência demonstrada pelas autoridades municipais. Se isso teria ou não resultado e levado a um rápido desaparecimento do surto e, como tal, a um menor número de vítimas, não o sabemos. Facto é que a epidemia continuou a ceifar inúmeras de vidas, ao ponto de deixar de haver espaço nos já de si exíguos cemitérios existentes nos adros das igrejas. Por isso mesmo, no dia 20 de Maio, o rei ordenou a criação de dois grandes cemitérios no exterior da cidade, um em Santa Maria do Paraíso (actual zona de Santa Apolónia) e outro em Santa Maria do Monte (decerto que junto da ermida da Senhora do Monte, na Graça), os quais deveriam ser os únicos em que eram autorizados os enterramentos.

Não é possível avaliar a eficácia de todas as medidas tomadas para evitar a propagação da doença, sabendo-se apenas que em 1507, a “peste” foi dada como debelada. A cidade podia, então, regressar à sua rotina habitual que, no entanto, voltaria a ser interrompida logo em 1510 com a eclosão de um novo surto de “peste”, provavelmente uma reincidência do anterior.

 

BIBLIOGRAFIA

OLIVEIRA, Eduardo Freire de, Elementos para a História do Município de Lisboa, Tomo I, Lisboa, Tipografia Universal, 1887.

RIJO, Delminda, “Aspectos e vivências da Sociedade Quinhentista”, A Lisboa de Fernão de Magalhães, Lisboa, Câmara Municipal de Lisboa – Estrutura de Missão V Centenário de Fernão de Magalhães, 2018, pp. 59-89.

RODRIGUES, Teresa, Crises de Mortalidade em Lisboa. Séculos XVI e XVII, Lisboa, Livros Horizonte, 1990.

 

FONTES

AML – Livro I do Provimento da Saúde

AML – Livro I de D. Manuel I

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