Antigas Profissões, Artes e Ofícios de Lisboa (Séculos XVI-XIX): Produção de Bens e Serviços: O Cordoeiro

Imagem 1 - Cordoeiros. 1568. Jost Amman
Imagem 2 - Esta indústria remonta a épocas imemoriais, mas ganhou ímpeto na Idade Média com o despontar do comércio internacional europeu de embarcações à vela. As cordas eram necessárias para múltiplas lides náuticas como a amarração de âncoras, como suporte de mastros, ou controlo das velas, razão pela qual as embarcações transportavam grandes quantidades deste material. Imagem: Tábua da Aguada do Xeque, Socotorá, D. João de Castro, Roteiro do Mar Roxo (Pormenor). 1541, Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra.
Imagem 3 - Cordoeiros de Brufe. Fotografia de António Silva, Jornal o Primeiro de Janeiro.
Imagem 4 - A magnífica vista de Lisboa conhecida por Leiden (c. de 1570) tem uma representação única, de grande detalhe e que é um verdadeiro documento sobre os cordoeiros da Porta da Cruz. Contam-se sete rodas em plena laboração. Manuscritos do século XVII dão-nos também a conhecer pormenores desta comunidade que se especializou em obras mais finas, nomeadamente sobre estruturas familiares e o espaço residencial na Vila Galega ao Campo de Santa Clara. Imagem: Vista panorâmica de Lisboa. Pormenor Campo de Santa Clara. Séc. XVI, Biblioteca da Universidade de Leiden.
Imagem 5 - No decurso da Época Moderna são referidas outras cordoarias pela cidade, em locais ainda espaçosos e disponíveis como na Boavista junto à formação do bairro da Bica, em Belém e em Pedrouços, e no Rossio e Portas de Santo Antão. Algumas mantiveram-se até meados do século XVIII e outras foram transferidas após o terramoto de 1755 para a Junqueira, local onde alguns anos mais tarde viria a ser construída a Real Cordoaria Nacional, já com processos de fabricação mecanizados. Imagem: Rua dos Cordoeiros em Pedrouços. 1941. Eduardo Portugal. AML-AF.

A relação de Portugal com o mar alcançou notoriedade mundial com a longa epopeia das navegações, iniciada no século XV. Uma epopeia que está repleta de heróis que pelo desconhecido se aventuraram, revelando à Europa outras culturas, gentes e produtos que modificaram a concepção do mundo.

Em resultado dessa sempiterna relação com o mar, a afirmação de Portugal e dos grandes navegadores é indissociável do conhecimento técnico e do labor de milhares de artífices que no decurso dos séculos criaram nos bastidores da grande empresa marítima os meios e os equipamentos. Eram carpinteiros, calafates, cordoeiros, ferreiros e tantos outros.

Hoje avocamos um desses artesãos (Imagem 1), o cordoeiro na cidade de Lisboa, os que nas suas rodas produziram durante séculos cordas e enxárcias que apetrechavam as naus, galeões e caravelas, viabilizando as navegações.

Esta indústria remonta a épocas imemoriais, mas ganhou ímpeto na Idade Média com o despontar do comércio internacional europeu de embarcações à vela. As cordas eram necessárias para múltiplas lides náuticas como a amarração de âncoras, como suporte de mastros, ou controlo das velas, razão pela qual as embarcações transportavam grandes quantidades deste material (Imagem 2).

Mas o trabalho do cordoeiro não se limitava a fazer as grossas cordas e enxárcias tão necessárias à expansão ultramarina. O seu labor desdobrava-se na produção de fios, cordéis, archotes, mechas e outros acessórios do dia-a-dia também imprescindíveis ao bom funcionamento da cidade e dos seus moradores.

Razão pela qual a exigente arte de fazer corda ocupava muitos artífices. Se no “Sumário” de Cristóvão Rodrigues de Oliveira (1551) são referidos apenas 30 cordoeiros, o “Tratado da Magestade, Grandeza...” de João Brandão (1552) dá-nos conta de 135 desses profissionais a laborar em Lisboa, número que nos parece mais verosímil pelo confronto com outras fontes manuscritas.

O ofício desdobrava-se em duas categorias, os de “obra grossa” e os de “obra delgada” por vezes incluindo os esparteiros. Tinham regimentos profissionais comuns, apenas diferenciados no tipo de produtos fabricados (1534, 1572, 1767). Do ponto de vista espiritual e assistencial refugiavam-se sob a irmandade de invocação de Santo Antão, no colégio jesuíta.

Para quaisquer destas especializações existiam duas condições indispensáveis: o mecanismo que era a roda de cordoeiro onde as matérias-primas, o linho ou o esparto eram esticados até formar a corda; e um espaço amplo para a sua instalação com capacidade para esticar muitos metros.

A confecção das cordas passava por várias etapas, desde a preparação da fibra e o manuseamento (a planta era seca e batido num sistema de pregos que separava os fios); a torção e enrolamento dos fios que dava origem à corda. Para esse efeito eram entrançados em três ou quatro cilindros rotativos cujo movimento era accionado pela roda manuseada por artífices. A imagem 3 representa alguns elementos do processo que podia envolver várias pessoas.

Remonta pelo menos à Idade Média a implantação dos produtores de corda na fronteira de duas importantes portas. De facto, o perigo de incêndios, dada a natureza inflamável da matéria-prima, sendo a privilegiada para todos os profissionais o linho (mourisco, galego e cânhamo) e também a estopa, levantou questões de segurança numa cidade cujos edifícios eram em grande parte construídos em madeira. Por outro lado, a conveniência de encontrar um espaço sem obstáculos de natureza urbanística para a colocação das rodas onde esticavam as cordas por dezenas de metros, subordinaram a escolha dos recintos de trabalho aos limites da Porta de Santa Catarina e da Porta da Cruz.

As cordoarias régias de obra grossa foram estabelecidas no limite interior da Porta de Santa Catarina, na colina de S. Francisco. Desactivada a velha cordoaria, a nova ocupou um estreito, mas extenso edifício, colocado em evidência na planta de Georgius Braunius (1598). As referências toponímicas destas duas estruturas permaneceram naquele espaço até ao século XVIII. No atual território, a cordoaria velha estaria entre o Largo da Faculdade de Belas Artes e a Rua Garret e a nova entre a rua António Maria Cardoso e a Rua do Alecrim. Apesar da proximidade ao complexo de construção naval da Ribeira das Naus, a progressão urbanística levou a que a oficina de cordoaria régia se instalasse no arsenal da marinha, para além de outras que entretanto surgiram no espaço ribeirinho.

Os cordoeiros de obra delgada foram remetidos para a Porta da Cruz, no Campo de Santa Clara, onde existia pelo menos em meados do séc. XVI a referência toponímica de travessa da Cordoaria.

Competia aos artesãos de “obra grossa” a produção de inúmeros e imprescindíveis apetrechos de auxílio à navegação como os cabres de âncora, guindarezas (cabos de guindaste), cortes e driças (corda de roldana ou cabo com que se movimentavam as vergas dos navios), novelos e tralhas (cabos para velas e redes), ou estrenques de esparto que eram cordas grossas para naus de grande porte, entre outras peças fundamentais à náutica.

Os cordoeiros de obra delgada que no decurso do tempo diversificaram a sua produção também para cordas de grande porte produziam, entre outras obras, fios e novelos de várias grossuras e funcionalidades desde cozer, ataduras para sacos, linhas de pescar, aprestos para animais cavalares (cilhas, cabrestos, soltas e prisões, enxacomas) e archotes. Para a náutica cordas, redes, balso (uma espécie de mochila dos marinheiros) e outros. O regimento do século XVIII já cita os cordoeiros do limite do Rossio cuja presença terá aumentado naquele bairro e inclui uma panóplia mais diversificada de bens produzidos como atafais de linho e de lã , rédeas tecidas com linho fino e lã, burças (bolsas de couro ou pele de porco), escovas e luvas de Cairo (feitas de côco), ou os tirantes das carruagens feitos de linho e de pele bovina.

A magnífica vista de Lisboa conhecida por Leiden (Imagem 4, c. de 1570) tem uma representação única, de grande detalhe e que é um verdadeiro documento sobre os cordoeiros da Porta da Cruz. Contam-se sete rodas em plena laboração . Manuscritos do século XVII dão-nos também a conhecer pormenores desta comunidade que se especializou em obras mais finas, nomeadamente sobre estruturas familiares e o espaço residencial na Vila Galega ao Campo de Santa Clara.

No decurso da Época Moderna são referidas outras cordoarias pela cidade, em locais ainda espaçosos e disponíveis como na Boavista junto à formação do bairro da Bica, em Belém e em Pedrouços (Imagem 5), e no Rossio e Portas de Santo Antão. Algumas mantiveram-se até meados do século XVIII e outras foram transferidas após o terramoto de 1755 para a Junqueira, local onde alguns anos mais tarde viria a ser construída a Real Cordoaria Nacional, já com processos de fabricação mecanizados.

Delminda Rijo (GEO - Núcleo de Demografia Histórica)

 

Bibliografia:

CAETANO, C. (2004). A Ribeira de Lisboa na época da expansão portuguesa (séclos XV a XVIII). Lisboa: Pandora edições.

LANGHANS, Franz-Paul, (1943). As Corporações dos Ofícios Mecânicos. Subsídios para a sua História. Lisboa: Imprensa Nacional de Lisboa, Vol. 1.

SILVA, V. da (194?), a Cerca Fernandina, p. 10- 12.

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