Dezembro

Memória dos trabalhos da Commissão para o melhoramento do Commercio nesta cidade de Lisboa criada por determinação das Cortes Geraes, Extraordinarias, e Constituintes da Nação Portugueza.  Lisboa: Typographia Rollandiana, 1822. - 156 p. ; 20 cm | Col. Vieira da Silva

Cota: CS  50-P

Em boa hora, e a coincidir precisamente com o “fecho do pano”, nos cruzámos com o catálogo 1820. Revolução Liberal do Porto1 e (incontornavelmente) com as palavras de Marcelo Rebelo de Sousa2, que, por sua vez, toma como inspiração aquelas3 que Vasco Pulido Valente4 redigiu em 1978. E pese a reflexão resultante desse entretecer entre as palavras de um e de outro ser aquilo que verdadeiramente se gostaria de trazer à luz do dia, mas dada a impossibilidade (e assumindo, até, a responsabilidade de uma eventual “amputação”) optou-se pela eleição deste trecho de Pulido Valente (generosamente trazido a terreiro por Rebelo de Sousa),

 “(…) em 1820 não existiam em Portugal capitais no bolso de ninguém, nobre ou burguês (…) o que existia, sim, em quantidades imoderadas, eram oficiais a quem se devia o soldo (…) desembargadores frustrados; funcionários públicos sem perspectivas; professores sem cátedras; juristas sem clientes; estudantes sem futuro; poetas sem leitores; lojistas e artesãos sem fregueses; e até padres sem boas côngruas. E é esta gente, que com comovedoras frases sobre a liberdade e o auxílio estrangeiro, se lança à aventura da revolução (…). A classe média urbana é a classe revolucionária por excelência. Nela se cria o projecto e a ideologia da revolução (…). (…) Assim, se durante o processo de assalto ao poder a classe média se vê forçada a alguns compromissos com os trabalhadores (…), no dia seguinte à vitória está em situação (…) de lhes exigir (é claro) que trabalhem com disciplina e espírito de sacrifício para bem da nova ordem (…)”.

Esta nota introdutória, que tende a assemelhar-se a um ensaio marsupial, intenta, sobretudo, estabelecer uma charneira com o documento (e a respectiva época) de encerramento, e, simultaneamente, com a actualidade. Afinal, talvez nunca se tenha revelado tão acutilante a urgência de a sociedade (re)pensar“ a tarefa, nunca concluída, de construir a Liberdade e Democracia” (palavras finais do «cidadão Marcelo Rebelo de Sousa» no respectivo prefácio do já citado catálogo).  
 
Na certeza de que o excerto acima ao ser capaz de fornecer/relembrar a moldura mais ampla da Revolução Liberal é capaz de introduzir novas nuances, sem esgotar a verosimilhança de estabelecer múltiplas “pontes” para os (vários) documentos que terão sido abordados. O terminus fica a cargo d` Memória dos Trabalhos da Comissão para o Melhoramento do Comércio nesta Cidade de Lisboa… (que no léxico de hoje diríamos que corresponde a um relatório de trabalho5); importa ainda acrescentar que foi elaborado/redigido por 24 elementos, porta-vozes dessa dita “classe média urbana”. Mais de centena e meia de páginas que estes homens endossaram ao monarca, e que em traços largos podemos sintetizar assim: até à pág. 88 a Comissão expôs o resultado dos seus trabalhos (que é assinada por 23 membros, desde Francisco António de Campos e Francisco José da Gama Machado  - presidente e vice-presidente, respectivamente - a Diogo Ratton, que fecha as assinaturas), e a seguir, quase noutras tantas páginas, apresentam-se mais duas grandes secções temáticas, a saber, “Porto Franco de Lisboa” (pp. 89-101) e “Projecto de Organização de Juntas Comerciais em todas as Praças do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves” (pp. 103-156) – com 15 assinaturas. Daí para a frente (e para os interessados numa leitura mais fina) é possível ter acesso ao posicionamento, individual, dos membros da dita Comissão. Ou seja, os “votos em separado” – a solo, Manuel Ribeiro Guimarães, numa exposição com 10 páginas, e João Loureiro, numa exposição com 27 páginas (onde remata a assumir que se afastou da Comissão e a pedir “a abolição de [mais de uma dezena de] Alvarás perniciosos ao progresso do Commercio e Industria”, elencando-os um a um), a somar às 17 páginas que Henrique Nunes Cardoso consagrou à Indústria fabril. Nesse entremeio mais duas exposições, uma reuniu quórum de 8 membros, outra ficou-se pelos 3 membros.     

Voltando às palavras de Pulido Valente para recortar a tese que nos parece central aqui, referimo-nos àquilo que ele apontou como a demanda que a classe média urbana faz em prol de um compromisso que permita a reconfiguração do poder. E o documento que nos ocupa, nesse sentido, pode configurar um desses exemplos.  Adentremos então nessa Memória dos Trabalhos… que enceta com uma espécie de preâmbulo introdutório (num tom, aqui e ali, um tanto ao quanto ácido) aos assuntos a serem visados. Para não cairmos em redundâncias, e por que a partir da página 18 são mencionados os assuntos in strictu sensu, seleccionaremos (apenas) duas ou três passagens exemplificativas da tal “acidez” que falávamos; nomeadamente na pág. 11 - He necessário por tanto que o Seculo 19 não ceda ao Seculo 16, na pág. 12 - a Comissão lembra mais huma multidão de estorvos que he preciso remover, e/ou na pág. 16 - As Cidades Gregas, e Fenicias, forão opulentas porque forão illustradas; a Hollanda fez hum grande Commercio, porque os seus vizinhos forão ignorantes, e indolentes.     

Com uma organização temática, este documento perpassa desde a “Agricultura6” (pp. 18-25), enfâse para o assunto dos baldios – (…) e a razão por que os Povos tem sempre resistido á divisão dos seus baldios, e logradouros, he sómente por temerem a desigualdade da partilha, que seria sempre em vantagem dos poderosos; mas se se adoptar o method[7] que a Comissão propõe, não só a abraçarão com ancia, porém até será hum meio de radicar-se o Systema Constitucional (pág. 23); a “Indústria” (pp. 26-33), destaque, p. e., para o pedido de abolição do privilégio que a Fábrica das Sedas  aufere “de só ella fabricar certos artigos”  – Que as Fábricas Nacionais administradas pelo Governo, passem a Particulares, com obrigação de as fazer laborar. (…) Sendo estes estabelecimentos administrados por mãos mercenarias, nunca neles reina o espírito de economia, tornando-se muito dispendiosos pelo sobrecarrego  de ordenados, e de Indivíduos inúteis (…) (pág. 30); ou “Comércio Interior” (pp. 34-41), destaque para as ideias, p.e., de franquear as exportações8 pelos portos secos com a raia espanhola; de poder local; de (antecipação) de uma espécie de pedido «simplex» no léxico actual, e de abolição da décima do maneio9. No que diz respeito ao poder local, São sem duvida as Camaras, ou Municipalidades as que devem, e podem vigiar mais de perto os males, ou embaraços que soffre o Commercio nos seus tranzitos; por isso se lhes deve recomendar o fazer abrir estradas novas, que facilitem as comunicações, endireitando as que fizerem tortuosas voltas (…) (pág. 34); a “desburocratização”, por assim dizer, Huma vez que as fazendas, ou géneros sahirem das Alfandegas, sendo seladas as que disso forem susceptíveis, deve o Proprietario ter a faculdade de as fazer circular pelo interior sem dependência de guia, ou despacho, pois que desta formalidade nada se lucra, senão incomodo do Negociante, e perda de tempo (pág. 35), e Os lançamentos dos Maneios são repugnantes, por isso que são desiguaes, e arbitrários, e estimativos dos lucros que cada hum faz do seu gyro  (pág. 38).

No que tange à temática do “Comércio Estrangeiro” (pp. 42-87) vários assuntos foram abordados, desde o pedido de criação de um Tratado de Comércio / Pauta de Alfândega capaz de reflectir energicamente a penalização tributária sobre os bens de luxo (enfâse para fazendas estrangeiras10 - “que se organize (…) as que são de mero luxo, e apetite, e as que temos necessidade”, pág. 42), a relembrar a doutrina das “Pragmáticas” e a remeter para a legislação proteccionista implementada a partir da segunda metade do século XVII que visou mitigar o deficit (continuado) da balança comercial portuguesa. Um pouco mais à frente, nas págs. 48-49, é abordada a retracção financeira de alguns bens, nomeadamente a escravatura11. É também tecida uma crítica mordaz à ausência de uma política de gestão da madeira/pinhais - “madeiras carvalho entregues ao fogo” (pág.51), completamente danosa para a coroa e a construção dos navios (pp. 52-54). A dispersão e o peso do sistema tributário também foram apontados, não passou despercebido à Comissão a diversidade de taxas e emolumentos, considerando-os demasiado onerosos e alguns absolutamente  discricionários (problema que a 200 anos de distância parece persistir, conforme revela o “Estudo sobre a Carga Fiscal em Portugal12” que nos elucida sobre os pesados custos fiscais e parafiscais, com mais de 4.300 taxas, das empresas). E note-se que apesar de o Correio Público13 à data contar com cerca de 300 anos ainda assim a introdução de novas modalidades (como a “mala-posta”, por exemplo), na viragem do século XVIII, levantava ainda muitos obstáculos aos hábitos enraizados (que só a Reforma Postal de Fontes Pereira de Melo, em 1852, foi capaz de mitigar). Logo que o Navio dér parte no Correio, deverá este por meio de hum Official comunicar a todas as Secretarias, e estações, que há naquele Navio, e a época de sua sahida, para em tempo ser remetida ao Correio a correspondência que deve mandar-se por ele (…); sem que seja o Capitão obrigado a andar pelas estações a participar, e a receber Officios. Que tendo qualquer Navio feito annuncio oito dias antes daquele em que pretende sahir, se lhe não obste no Correio, ou outra Repartição por motivo algum a sua sahida. (pp. 68-69).

Clama-se também por um “Código Marítimo” e pela “absolvição de todos os encargos na Pescaria fresca, ou pelo menos reduzidos estes a hum Direito anual nos Barcos”; em suma pede-se que “a Pesca [seja] animada e promovida por todos os meios possíveis” (pág. 79). Sob a designação de “Disposições Geraes” são elencados, ainda, inúmeros assuntos. Primazia para o crédito14 – “Fazer cessar a falta de Crédito, porque sendo o Crédito o principal esteio do Commercio, este diminue, ou totalmente paraliza em proporção do decrescimento daquele” (idem); secundado pela revitalização da Marinha Mercante, “que nos dará Marinheiros de sóbra para tripularmos a Marinha Militar” (pág. 80). A pirataria também foi identificada, apontando-se a necessidade de “acabar, ou pelo menos diminuir” (pág.81), palavras semelhantes foram usadas com o contrabando (pág. 82). Mau grado um assunto identificado há 200 anos por essa  Commissão permanecer  tão actual e/ou polémico – Este distrahimento de subsídios tem assás concorrido para o triste estado em que se achão a nossa Agricultura, Industria, e  Commercio, a cujos importantes objectos há mister acudir-se quanto antes. Tornem-se pois oficiosos aqueles subsídios dispendidos como convém, e punão se como infractores da prosperidade da Nação, todos os que abuzarem, ou contravierem tão saudável providência (…) (idem).            

A necessidade de um “Código Mercantil”, que possa reger (e sentenciar) as “Causas Commerciais”, também é apontada como uma prioridade (sendo que a Comissão aponta os Códigos Mercantis da Rússia e da França como modelares, pág. 83). Subsequentemente refere-se a necessidade da “Educação Comercial”, “erigindo Aulas Comerciais nas principais Praças do Reino Unido, em que se ensine gratuitamente aos Alunos que as quiserem frequentar” (sendo que o Compêndio que venha a informar as aulas de aritmética, álgebra, geometria, entre outras, deve ser adaptado do “famoso Tratado de João Baptista Say”), pág. 84. Não podemos deixar de trazer à colação a crítica ao modus operandi  do “Tribunal da Junta do Comércio”, que, segundo a Comissão, incorre no inveterado abuso de se aproveitar de todos os Feriados, sem respeito á Ley do Soberano Congresso que os extinguiu, a ponto de passarem Semanas inteiras sem haver Despacho do Tribunal; por isso requer a Comissão que nelle se adopte o mesmo systema  que actualmente rege a Casa da Suplicação, havendo três sessões efectivas em cada Semana, hajão ou não Feriados (…), pág. 87.


A segunda parte do documento, por assim dizer, compreende dois itens numa nomenclatura, agora, de detalhe (com apresentação de medidas/acções concretas), a saber, o “Porto Franco[15] de Lisboa” (pp. 89-101) e o “Projecto de Organização de Juntas Comerciais em todas as Praças do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves” (pp. 103-156). O argumento central em defesa do porto-franco, a nossa situação geográfica he tal, que estamos por assim dizer, no centro do Mundo. Possuimos hum dos mais belos portos da Europa. Lisboa, que parece estar colocada para ser o grande Armazém central de toas as Nações, onde vindo depositar os seus produtos os podem permutar pelos do nosso Sólo, e Indústria. (…) Portugal de per si hum tão pequeno ponto no Universo, que forçosamente há de fundar a sua existência política em seu Commercio, o qual desde que o Brasil foi elevado á categoria de Reino, chegou a tal extremo de abatimento, que nenhuma outra medida o póde reanimar senão o estabelecimento de hum Porto Franco, pág.98. Ainda em relação ao porto-franco, este subdivide-se em: «Organização do Porto Franco de Lisboa»; «Regulamento Geral» e «Do Tranzito», neste último destacaríamos o (velho) assunto da (re)definição das fronteiras – afixando a presença de três Alfândegas em Portugal, a ter lugar em Bragança; Castelo Branco e Elvas, e paralelamente toma-se contacto com a petição de todos os géneros depositados no Porto Franco, haverão livre tranzito pelo interior do Reino, até entrarem nas Raias de Hespanha, pág. 94.  

Antes de avançarmos para o item respeitante às “Juntas Comerciaes” faremos (ainda) uma breve incursão à obra O porto de Lisboa: estudo de história económica para compreender melhor a importância do porto de Lisboa à época. Afinal, é inequívoca a sua importância face ao território nacional não ultramarino. Esse estudo acrescenta que “dos 1.200 navios que no ano de 1820 entraram no país, 40% deles entraram no porto de Lisboa” (BEBIANO, 1960: 30). Todavia, e ainda que seja verdade que o porto franco contou com muitos adeptos, também é verdade (conforme reconhece a Comissão) que enfrentou resistências, o argumento por alguns repetido de que da existência de hum Porto Franco necessariamente deve resultar hum fácil caminho para o contrabando (…) (pág.99).  A Comissão, porém, refuta essa justificação, considerando-a um falso argumento, pois que (…) este mal tem nascido sempre da corrupção dos Empregados Públicos, fazendo-se uma reforma nestes, depois de regular, e folgadamente pagos (porque ha necessidade he inimiga da virtude), e impondo-se-lhes severas penas, suas prevaricações devem acabar. (idem).   

Chegados ao “Projecto de Organização de Juntas Comerciais em todas as Praças do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves”, que por sua vez se subdivide da seguinte forma: “Da Organização das Juntas Comerciais” (expressa em VI artigos); “Das Eleições das Juntas Comerciais” (XIV artigos); “Das Atribuições Económicas das Juntas” (III artigos); “Das Atribuições Administrativas” (VII artigos); “Das Atribuições Judiciárias” (VII artigos); “Da Organização da Junta Suprema do Comércio” (VII artigos); “Da Eleição da Junta Suprema”  (IX artigos – onde talvez destacássemos o V e o VI artigo, com definição que “se algum dos Eleitos não puder, ou quizer aceitar o lugar de Deputado (…) chama-se aquelle que houver tido na eleição maior número de votos”, e “não haverão reeleitos sem mediar huma eleição”, respectivamente); “Das Atribuições Económicas da Junta Suprema” (VI artigos); “Das Atribuições Administrativas” (IX artigos); “Das Atribuições Judiciárias” (VII artigos). Entre as páginas 118-129 há lugar a “Reflexões acerca do Projecto antecedente[16]”, e aqui sobressai, p. e. (no título primeiro, art.º 4) a correcção de (antigas) arbitrariedades – não quiz que houvesse secessão sem a maioria de metade dos votos, para se não verem decisões feitas por dois votos somente, como tem sucedido em alguns Tribunaes, pág. 119; a alegação final nas páginas 128-129 também nos parece digna de registo – Resta á Commissão acrescentar que deo a este Projecto a forma de Leys por artigos, por estar persuadida da bondade deste methodo, e não porque tivesse a vaidade de se capacitar que elle há de ser totalmente adoptado pelo Soberano Congresso, a quem tão somente procurou obedecer (…). Enquanto as páginas 130 a 132 dão voz ao assunto que se prende com o “Regimento dos Correctores”, e aqui destaque para o know-how (se recorrermos ao estrangeirismo que actualmente se tem vindo a adoptar) exigível para o desempenho do cargo/função – Ninguém poderá ser Corretor sem ter pelo menos 3 annos de residência na Praça em que o pertender ser (…), pág. 130. Também nos confrontámos com o conceito de discriminação/exclusão (conforme diríamos hoje) – Os Corretores serão obrigados a pagar ás Juntas Commerciaes  hum imposto annual, arbitrado pelas mesmas Juntas, segundo o Commercio da Praça, e o giro de cada hum. Os Estrangeiros pagarão o duplo do que pagarem os Nacionais, págs. 131-132.  

Ainda sob a égide das “Juntas Comerciais” (que, e usando as próprias palavras adiantadas pela Comissão, correspondem ao “Tribunal competente para conhecer das questões nascidas de contractos feitos por Corretores”, pág. 131) muito podíamos trazer a terreiro, porém, e para não confiscar a vontade de encontro com o documento optou-se por assinalar unicamente duas ou três ideias (as que considerámos mais relevantes). Pois bem, destaque para a ideia de eleições para as “Juntas Comerciais” – as Eleições serão feitas impreterivelmente todos os annos, e em todas as Praças (…). Todos os Negociantes naturaes, naturalizados, e na pósse de seus Direitos, estabelecidos nas respectivas Praças, e que foram matriculados, poderão ser Eleitores, e Eleitos (…). As Eleições serão feitas por listas que contenhão os Nomes dos Negociantes que hão de preencher os lugares (…). As listas serão assignadas, e se introduzirão pela fenda de hum cofre, que deverá haver no lugar em que se fizeram as mesmas Eleições (págs. 106-107); relevo também para a ideia de solidariedade corporativa – propor á Junta Suprema projectos ácerca de estabelecimentos de Montes Pios de Commercio, a fim de que hum Cofre para isso estabelecido se acuda ás precisões daqueles Negociantes, que cahirem em indigência, e igualmente ás suas Mulheres, e filhos depois da sua morte, huma vez que existão em pobreza[17] (pág. 110).      

Por fim, as páginas 133-156 dão corpo à componente epistolar que a Comissão para o Melhoramento do Comércio dirige ao monarca a 4 de Janeiro de 1822. Esta, por um lado apresenta uma espécie de síntese daquilo que entretanto já fomos revisitando, e por outro enfatiza mais algumas ideias-chave (certamente a corresponder àquilo que os proponentes terão considerado mais premente). Dentre essas ideias constam não só a preocupação com o afrouxamento das transacções com o Brasil como a falta de reciprocidade nas mesmas, é veiculada a ideia de que consumimos, muito e caro, determinados bens provenientes do Brasil (p. e., açúcar; café; cacau; tabaco; algodão, entre outros) e que o inverso não sucedia em relação aos “nossos”  artigos:  vinho; vinagre; aguardante; sal (entre outros).           

Um breve parêntesis para ir ao encontro de Sebastião Soares18 (1865), que nos dá conta que o final de Setecentos e especialmente a partir da chegada da corte portuguesa ao Brasil (1808) o comércio de cabotagem com o exterior ganhou novo fôlego, e possibilitou o aumento, em larga medida, das trocas mercantis entre províncias/capitanias brasileiras. Comércio esse que com a Independência (1822) ainda assistiu a uma situação de incremento. O autor revela que a partir do início do século XIX a marinha mercante (brasileira) é próspera. Contudo, não se furta a esclarecer que os esforços de ampliação colidiram com a concorrência estrangeira, principalmente após a abertura dos portos e o tratado de 1810. Daí que os negociantes tenham reclamado da concorrência, pressionando no sentido da implementação de mediadas/acções que a travassem. E foi nesse contexto que o príncipe regente em 1814 resolveu proibir aos estrangeiros o comércio de cabotagem (que de uma forma simplificada podemos designar por comércio costeiro). Todavia, a abertura dos portos e os tratados com a Inglaterra revelaram-se incapazes de franquear aos estrangeiros o comércio costeiro. Aliás, o comércio de cabotagem19 abrangeu trocas de uma amplitude considerável entre as Ilhas do Atlântico e o Brasil, tanto que a Comissão para o melhoramento do Comércio… apontou a falta de observância da Lei – quantos não poucos Navios Estrangeiros tem levado ao Brasil o sal das Ilhas de Cabo Verde, e quantos outros navios estrangeiros tem conduzido mercadorias de huns para outros pórtos daquelle mesmo Reino; e com o maior escandalo se lê na Gazeta Idade de Ouro da Bahia N. 115, «achar-se o Brigue Inglez Warrior vendendo a seu bordo a carne do Sertão!», pág. 135. Para não cair no erro de redundância julga-se desnecessário voltar a determinados assuntos, como o das fazendas.

Em suma, o Bicentenário da Revolução Liberal foi o leitmotiv deste empreendimento levado a cabo pelo Gabinete de Estudos Olisiponenses (inaugurado com o entusiamo (contagiante) e a selecção do corpus documental legado por Eunice Relvas), e enquadrou-se num projecto mais amplo que visou assinalar a efeméride (conforme já tivemos oportunidade de explicitar). Reiterar que nunca foi nosso propósito obter conclusões, mas de bom grado aceitámos o desafio da reflexão. E foi nessa senda que pedimos de empréstimo as palavras de Elisabeth F. Loftus: “a memória, como a liberdade, é uma coisa frágil”.

Agora com todos os documentos em linha, creio que nos compete fazer uma brevíssima nota de apreciação/encerramento. Pois bem, se por um lado reconhecemos que o enquadramento/análise de algum(uns) documento(s) porventura possa não ter sido capaz de traduzir o esforço que emprestámos ao assunto, por outro (passe a imodéstia) orgulhamo-nos de robustecer a memória (e o saber) daqueles que nos acompanharam (e dos que poderão vir a fazê-lo), acreditando que a robustez desta, esteja, concomitantemente, a robustecer a Liberdade.  Conceito que o contexto pandémico actualizou (afinal a liberdade era, para muitos, como o oxigénio que respiramos e que tendemos a dar como “adquirido”). Como? Diríamos que empurrando-o para fora dos manuais constitucionais ou histórico-sociológicos, pois a “base de trabalho”, desta feita, tem sido empírica (“experimentada” através do reverso: pela ausência/privação). 200 anos de distância que para além de não deixarem esmorecer a necessidade do compromisso colectivo para com a preservação e ampliação dos valores conquistados na Revolução Liberal de 1820, ainda a aviva.      

Não podemos terminar sem dirigir uma palavra de apreço a todos os elementos da equipa que colaboraram com este empreendimento.

 

Para consultar o documento clique em: Initiates file downloadCS  50-P (pp. 1-70) e Initiates file downloadCS 50-P (pp. 71-152).

 

1. Reconhece-se a mais-valia deste trabalho hercúleo, com autoria de José Manuel Lopes Cordeiro (2020) e edição da Câmara Municipal do Porto, que compaginou, actualizou e ampliou a compreensão de um marco tão importante da história do nosso país. Enquanto não tem acesso à obra, e caso queira aproximar-se da mesma convidamo-lo a fazê-lo através da recensão de Paulo Jorge Fernandes: https://run.unl.pt/bitstream/10362/110527/1/CORDEIRO_Jos_Manuel_Lopes_2020_.pdf. Resta-nos endossar uma palavra de agradecimento ao Dr. José Manuel Garcia e ao Cmdte. Vítor Mendonça, colega, e assíduo leitor/investigador do Gabinete de Estudos Olisiponenses, respectivamente, por terem subtraído tempo aos seus muitos afazeres. Registo com apreço essa  transmutação que ambos traduziram na nobre atitude da partilha (generosa) de sugestões bibliográficas.
2. Pois é quem prefacia a obra (pp. 11-15).
3. Que abrigou sob a designação de “Pássaros de uma só pena: para onde vai a Revolução?”
4. Que coincidentemente nos deixou no ano da comemoração do bicentenário da Revolução Liberal.
5. Elaborado em cerca de meio ano, pois sabemos que a dita Comissão foi criada por determinação régia a 28 de Agosto de 1821 e a data aposta no fim desse relatório “Memória” é 31 de Março de 1822.
6. Que, e a par dos outros temas, mereceu estas palavras: “Achando-se a Comissão possuída do princípio que a Agricultura, Indústria, e Commercio, Fontes da prosperidade Nacional, devem ser mutuamente auxiliados (…).” Pág. 26
7. E que é apresentada na pág. 22 da seguinte forma, Que se faça pelos Parochos huma relação exacta dos chefes de família do distrito a que pertencerem os baldios; e que depois de feita a aleição dos Deputados ás Cortes, se proceda a eleger 3, ou 5 partidores, os quais dividirão os baldios em tantas porções, quantas forem os ditos chefes de família. (…) Lançar-se-hão depois estes números n`huma urna, assim como se lançarão em outra os nomes dos chefes de família, e depois se extrahirão á sorte como nas loterias ordinárias, adjudicando-se a cada hum a porção, que lhe sair.”       
8. E neste âmbito o século XIX não introduz novidade, pois que o regime de lealdamento (ou alealdamento) estabelecido no início do reinado de D. Afonso III já tinha como objectivo garantir um equilíbrio entre a exportação e a importação. Para mais detalhe vide, p.e., SERRÃO, Joel (dir) (1990). “Lealdamento ou Alealdamento”, in Dicionário de História de Portugal, Porto: Livraria Figueirinhas, pág. 443.
9. Que, de uma maneira simplificada, podemos dizer que correspondia à décima sobre os lucros do comércio. Se tiver interesse em saber um pouco mais sobre a génese do amplo imposto designado de «Décima» pode socorrer-se da síntese que Conceição Andrade Martins elaborou e apresentou no IV Encontro de História da Contabilidade da Ordem dos Técnicos Oficiais de Contas (2011), onde a autora nos dá conta que “o imposto foi criado em 1641 para prover às necessidades de defesa do reino, mais concretamente para fazer face às despesas com a guerra da independência. E, em princípio, era uma contribuição com uma taxa de 10% e a duração de três anos, tendo-se no entanto prolongado e, inclusivamente, chegado a atingir os 30%”. Disponível em:  https://www.occ.pt/fotos/editor2/conceicaomartins.pdf   
10. “(…) a causa infalível de sair o dinheiro deste Reino é entrarem nele tantas fazendas estrangeiras que importam três partes mais que os nossos frutos que se tiram em retorno delas”, conforme  refere Jorge Borges de Macedo (1963). Problemas de história da indústria portuguesa no século XVIII. Lisboa: Associação Industrial Portuguesa, pág. 27
11. Para contextualizar
a problemática da escravatura pode consultar, p.e., Arlindo Manuel Caldeira (2017). Escravos em Portugal. Das origens ao século XIX. Lisboa: Esfera dos livros ou, de uma forma mais célere, o resultado do trabalho que o Arquivo Histórico do Tribunal de Contas fez como resultado da parceria com a CML-DPC-GEO no projecto "Testemunhos da Escravatura. Memória Africana”, https://erario.tcontas.pt/pt/arquivo_biblioteca/projectos/memoria_africana/apresentacao.html   
12. Disponível em https://cip.org.pt/3d-flip-book/estudo-sobre-a-carga-fiscal-em-portugal/ 
13. Aliás, este assunto volta a merecer menção na pág. 85: “Organizar de huma forma mais conveniente a Administração do Correio (…). Esta Administração he malfadada, todas as vezes que se ha pertendido melhorar, ha dado infelizes resultados.”
14. Problema que entronca, também, na descida acentuada do papel-moeda em 1820. Situação que aparece retratada em inúmeras fontes, atente-se, p.e., nos versos pasquinários que apareceram numa janela do Passeio Público:
Nação papalva, e coitada / Teu ouro deste aos inglezes / Dás tua prata a maltezes / Que te resta? Papelada / Olha que ficas sem nada / Grita com grandes clamores: / Vós que sois Governadores / Fazei valer o papel / Ponde a pregão e cordel / Os Ladrões Rebatedores. In Lisboa d'outros tempos (vol.II, pág. 143), de Pinto de Carvalho (vulgo Tinop).
15. Que segundo BEBIANO, J. Bacelar (1960). O porto de Lisboa: estudo de história económica. Lisboa: Administração Geral do Porto de Lisboa, nos deu a redescobrir o regime de porto-franco foi adoptado em 1680 para os navios que trouxessem pão (pág. 41). 
16. Que “com todas as Assignaturas, á exepção da de João Loureiro, vem a ser 22”, pág. 129.
17. O assunto da indigência/mendicidade oitocentista já foi aflorado por nós num outro documento, pelo que optamos só por recordar que a ausência do elemento masculino na vida da mulher podia constituir, precisamente, o factor causador da sua pobreza. O estado de viuvez, tendencialmente, suprimia a garantia do seu sustento e dos restantes membros da família (ou, em raros casos, amputava esse rendimento).
18. SOARES, Sebastião Ferreira (1865). Elementos de estatística compreendendo a teoria da ciência e a sua aplicação à estatística comercial do Brasil. Rio de Janeiro: Typographia Nacional.
19. Ainda que estejamos cientes que se carece de estudos de maior profundidade e exactidão que possibilitem mensurar com maior detalhe esse comércio.

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