Os Leões do Rei no Paço da Alcáçova de Lisboa

Bestiário Medieval, British Library, Additional Manuscript 11283, fl. 1 (c. 1180)

Para além da identificação simbólica com o apóstolo S. Marcos, mas acima de tudo, com Deus e com Cristo ressuscitado, o leão constituía, na Idade Média, um símbolo de força, de ousadia e de virtude. Não admira que muitos nobres e reis procurassem, de alguma forma, identificar-se com estes felinos, não só através dos seus sinais heráldicos, mas também mediante a posse e ostentação desses animais.

Não sabemos quando, como, e muito menos em que contexto, surgiram os primeiros leões no paço real da alcáçova de Lisboa, onde eram mantidos em cativeiro e em instalações próprias para o efeito, um pouco à semelhança do que era prática corrente noutros palácios reais europeus, designadamente em Castela e em Aragão. Sabemos, sim, que a primeira referência documental à sua presença remete para o reinado de D. João I (1385-1433), desconhecendo-se, no entanto, quantos leões então aí se encontravam. As fontes, pouco eloquentes sobre este assunto, informam-nos apenas que, durante o governo do primeiro monarca da dinastia de Avis, a alimentação desses felinos era paga pela comunidade judaica de Lisboa, à razão de 25 reais/dia por cada animal, ou seja, um total que ascendia a mais de 9000 reais/ano, quantia que se manteve inalterada até ao reinado de Afonso V (1438-1481).

Mas em Fevereiro de 1452, porque os restantes leões teriam entretanto morrido – em cativeiro a sua longevidade ronda os 20 anos –, já só existia um exemplar, no caso, uma leoa. Foi por esse motivo que os representantes da comuna dos judeus da cidade solicitaram ao monarca uma redução do montante que estavam obrigados a pagar, um pedido a que Afonso V se mostrou sensível e ao qual respondeu favoravelmente determinando que o valor a pagar passaria para os 3000 reais anuais, o que constituía uma redução substancial. Caso o rei viesse a obter, como esperava, um segundo exemplar, esse valor duplicaria para os 6000 reais. Contudo, a partir do terceiro leão, o pagamento seria reduzido para os 2500 reais/ano por cada um deles. Pouco mais se sabe a respeito deste assunto, excepto que era um indivíduo de nome Álvaro Peres que, em 1452, estava incumbido de alimentar a leoa do rei.

Tudo indica que o objectivo de Afonso V de aumentar o número de leões foi conseguido, mas talvez já pelo seu filho, D. João II (1481-1495), pois quando o viajante alemão Jerónimo Münzer visitou a cidade de Lisboa, em Dezembro de 1494, isto é, já nos finais do reinado d´O Príncipe Perfeito, pôde testemunhar a presença de dois “fortíssimos” leões no paço real da alcáçova, os quais é possível que tenham sido trazidos pelos navegadores e comerciantes portugueses que exploravam a costa ocidental africana. Pela proximidade das datas, é muito provável que sejam os mesmos dois que aí se encontravam em Março de 1498, já no reinado de D. Manuel (1495-1521), e cuja alimentação custava, por ano, 7200 reais. Contudo, nesta altura não seriam já os judeus de Lisboa – entretanto expulsos de Portugal – a assegurar o pagamento da alimentação desses animais, mas sim os cofres da Coroa.

Pelo menos desde o reinado de Afonso V que os leões do rei estavam alojados numa dependência do paço da alcáçova próxima da torre de menagem do castelo, a torre sudoeste, conhecida também como torre do paço. Tratava-se de um local escolhido propositadamente – devido aos cheiros e ao ruído – por ser o mais afastado da capela, das áreas residenciais e das cozinhas do palácio, conforme demonstrou Diana Martins. Aliás, é aí que se situa actualmente o restaurante “Casa do Leão”. Seria aquele o mesmo compartimento que era conhecido no século XVI como Sala dos Leões? E seria esta a “sala grande dos leões” referida também nas fontes Quinhentistas, ou estaremos perante dois, ou mesmo três, espaços distintos? Assim, não é de rejeitar a possibilidade de estas duas designações não estarem propriamente relacionadas com a presença de animais vivos, mas sim com a existência nessa sala, ou salas, de algum tipo de motivos decorativos ou de ornamentações com representações de leões, o que, nesse caso, nos remete para um outro tipo de utilização – reuniões, audiências –, aliás, como é sugerido pelo facto de estar dotada de bancos grandes e escabelos, os quais foram inclusivamente objecto de melhoramentos, tal como as portas e janelas da sala, durante o reinado de D. Manuel. Segundo esta lógica, a sala dos leões e a sala grande dos leões seriam, portanto, aposentos distintos do espaço reservado aos felinos propriamente ditos. Mas há ainda uma outra hipótese e que é a de se tratar de um mesmo espaço que, depois da saída dos leões desse local, talvez entre 1498 e 1508, teria sido reaproveitado para uma outra utilização, ainda que mantendo uma designação que remetia para os seus anteriores ocupantes. São hipóteses que, dado o silêncio das fontes e o estado actual dos conhecimentos, não é possível verificar.

Ausentes da alcáçova desde o século XVI, a memória dos leões do rei continua bem presente nesse local, nomeadamente nos leões de pedra que ainda hoje podemos observar na zona ocidental da alcáçova, precisamente no local onde, em finais da Idade Média, se levantava o paço real e, tudo o indica, o compartimento destinado àqueles animais.

Miguel Gomes Matins

 

FONTES:

Arquivo Municipal de Lisboa, Livro II de D. João II

Arquivo Nacional-Torre do Tombo, Chancelaria de D. Afonso V, Livro 12

Arquivo Nacional-Torre do Tombo, Chancelaria de D. Manuel, Livro 30

Itinerário do Dr. Jerónimo Münzer (Excertos), ed. de Basílio de Vasconcelos, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1932.

 

BIBLIOGRAFIA:

MARTINS, Diana Neves – O Paço da Alcáçova de Lisboa. Uma Intervenção Manuelina, Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (Tese de Mestrado policopiada), 2017, 2 vols.

 

CASTILHO, Júlio de – Lisboa Antiga. Segunda Parte: Bairros Orientais, Vol. IV, Lisboa, Câmara Municipal de Lisboa, 1936 (2ª ed.)

Símbolo de acessibilidade à Web

Site optimizado para Firefox 2.0.0.10, IE 7.0 e IE 6.0
Todos os conteúdos deste site são propriedade da CML ou das entidades neles identificadas.
Utilização sujeita a autorização da Câmara Municipal de Lisboa · © 2007
Desenvolvido por CML/DMAGI/DNT