Abril

Auto de toda a festividade nacional de 1821 / Câmara Municipal de Lisboa. - [Lisboa] : [Câmara Municipal], 1821. - 8 p. ; 30 cm

Cota: ETN 6-G RES

 

Antes de adentrarmos no documento que aqui nos traz, façamos uma espécie de intróito (lexical) que nos permita ir ao encontro do significado da palavra «auto», que hoje, como em Oitocentos, nos parece indubitável.

auto1 n. m. 1 ato solene 2 direito documental oficial em que se narra uma ocorrência ou se regista um ato e que tem fins legais (…) 4 (…) levantar/lavrar um fazer a narração escrita e circunstanciada de qualquer ato (Do lat. actu-, «o que se realizou»).

Mas interessa perceber a genealogia deste memorial, a intenção em si. Ora ela surge pela mão das Cortes Gerais e Extraordinárias, através de comunicado de 17 de agosto2 dirigido ao Governo, que e através de portaria régia de 30 de agosto merece a plena aceitação – definindo o monarca que o Senado da Câmara mandasse tomar conta desta Obra, que tanto devia lisonjear, e engrandecer a Nação, como “encarregado da direcção da Obra” o autor do desenho (oferecido por Domingos António de Sequeira), ou seja, o próprio Sequeira – que, e segundo a documentação epistolar que já tivemos oportunidade de aludir, se relaciona com os vultos protagonistas do liberalismo desde, pelo menos, 16 de dezembro de 1820.

Mas voltemos ao documento, este dá conta que o Senado da Câmara grato ás merecidas expressões daquela Régia Portaria, e desejoso de que não aparecesse menos o seu zelo nesta, que em todas as outras Commisões Nacionaes, de quem tem sido encarregado, deliberou logo que se procedesse á abertura do alicerce, segundo as dimenções indicadas na planta, que lhe foi apresentada por parte de Domingos António de Sequeira (…).

Temos vindo a mencionar o nome de Sequeira diversas vezes, pelo que se impõe que façamos um breve parêntesis para contextualizar esta figura de proa na Arte portuguesa/europeia do séc. XIX que chegou a ser designado por «Rembrandt lusitano», designação essa que no empreendimento doutoral de Markl3 (2013: 17) fica evidente de como terá surgido – muito graças a Silva Leal e a Raczynski, que assim o intitularam. É a autora que nos apresenta também a amplitude artística de Sequeira – de retratista régio, a exímio desenhador… de medalhas; espadas de honra; peças de ourivesaria (em que a Baixela Vitória4 constitui expoente máximo); notas de banco, etc., papel absolutamente cimeiro também na arte da Litografia, e mais se podia acrescentar. Mas aqui (como facilmente se depreende) daremos destaque à sua componente de desenhador para projectos destinados a monumentos escultóricos. Ele que, e conforme nos refere o auto (nas págs. 6 e 7), na qualidade de «Author do desenho» acompanhou toda a cerimónia junto do Director da Obra.

No Auto de Festividade Nacional, ficámos então a saber que o Senado com a maior regularidade começou a Obra e concluiu o alicerce até ao dia quatorze de Setembro, e, a par disso, envidou todas as diligências para a devida solenidade do cerimonial (que aparece, simbolicamente, comparado à “feliz Restauração do Reino” [1 de dezembro de 1640]), foram expedidos os Convites, e os Officios competentes (…). Comprehenderão os Convites a Corte; todas as Authoridades Militares, Civis, e Ecclesiásticas; Juiz do Povo, e seu Escrivão, Casa dos Vinte e quatro, os Juízes, e Officiais das Bandeiras, e os de todos os Officios, que lhe são anexos5 (pág. 4). Foi também nesse mesmo dia que o Senado participou as medidas ao Soberano Congresso, que terão compreendido uma Girandola para dar signal ao Castello de São Jorge, que atirou uma Salva Real e toda a operação Militar disposta pelo General Sepúlveda (pág. 7).

Dia 15, agora e para ter acesso a toda esta moldura cerimonial, por assim dizer, chegámos cedo: às 7 horas da manhã. Nesse permeio de uma hora entre o ultimar de um detalhe ou outro e a chegada do monarca, tivemos oportunidade de ver as janelas dos habitantes do Rossio engalanadas; o inumerável concurso de Cidadãos por todo o espaço, e Ruas posteriores ás bem postadas alas Militares; as janelas povoadas dos dois Sexos, cujo adorno aformoseava a perspectiva dos Edifícios, que rodeião a Praça; huma estrada areada, desde a porta férrea do Palácio do Governo6, coberta de murta, e flores, até à rampa, que descia à base do alicerce, que no cimo se achava rodeada de huma varanda coberta de tapeçaria (…) a que se congregárão todas as Respeitáveis Classes convidadas, esperando por ElRei que com efeito chegou alli pelas oito da manhã, com os Sereníssimos Senhores Infantes Dom Miguel, e Dom Sebastião (págs. 4 e 5). Esta ornamentação, que pretende concorrer para a sacralização do quotidiano, era usual por exemplo nas procissões.

Entretanto, Sua Magestade, precedida de todo o numeroso Concurso, que ficou fazendo alas em quanto Sua Magestade, com o Senado, e Juíz, e Escrivão do Povo descerão á base do Monumento, para ser executado como foi, com a maior solemnidade o Cerimonial respectivo á colocação da primeira pedra (…) pelo Primeiro Rei Constitucional o Senhor Dom João Sexto com o séquito (…). (págs. 5 e 6).

Numa espécie de zoom temos ainda acesso privilegiado à inscrição da Medalha, que também deveria ficar no Cofre de pedra, a qual era do theor seguinte = Inscripção gravada na Medalha que ficou no Monumento = Aos vinte e sete dias do mez de Agosto de mil oitocentos e hum. Decretarão as Cortes Geraes e Extraordionárias Constituintes da Nação Portugueza, que se erigisse nesta Praça do Rocio este Monumento da Nossa Regeneração Política, feita nos dias vinte e quatro de Agosto, quinze de Setembro e primeiro de Outubro de mil oitocentos e vinte = Do outro lado = ElRei Dom João Sexto, Primeiro Rei Constitucional lançou a primeira pedra deste Monumento em o dia quinze de Setembro de mil oitocentos vinte e hum =

D. João VI, que herda o trono num contexto familiar já de si bastante idiossincrático (a morte do irmão mais velho; a “sentença” médica de “incapacidade mental” à Rainha D. Maria I (sua mãe), e como que não bastasse, viu-se, depois, a braços com as teias de contra-poder empreendidas pela sua esposa - D. Carlota Joaquina) e que recebe um legado conjuntural (que temos vindo largamente a abordar) já muito longínquo da abastança que terá caracterizado o período joanino, talvez veja nesta nova realidade que obrigou a Corte a regressar ao país a “oportunidade” de colocar a sua marca/chancela na História da Monarquia, pois de facto terá sido o “Primeiro Rei Constitucional”!

Não mais que um apontamento sob esta nomenclatura ritual da primeira pedra, que é conduzida numa Padióla, guarnecida de damasco, e oiro, dado que atrás já tivemos oportunidade de convidar o olhar do leitor para este decalque, por assim dizer, que se fazia dos ritos sagrados - onde toda a narrativa simbólica é assumidamente construída e assente no louvor ao divino/sagrado. O mesmo se pode aplicar às outras ofertas feitas ao Soberano Congresso, nomeadamente a oferta de uma Procissão [na Sé] pela Memoria da feliz Restauração do Reino seguida de missa, sendo que os cânticos foram oferta e responsabilidade da Irmandade de Santa Cecília (que, pela sua tradição ligada à música, acreditamos que nos remeta para a actual Escola de Santa Cecília, ao Lumiar), acreditamos que não será de somenos esclarecer que sua Magestade, por Portaria, remete a Oferta (missa cantada) ao Senado.

Ainda no cômputo festivo há que destacar a componente nocturna, com uma banda de música a tocar toda a noite na arcada do Edifício do Senado, que por sua vez tinha «vistosa Illuminação» com a inscrição – Restauração – e Regeneração – AO DIA 15 DE SETEMBRO | A INDEPENDENCIA CONQUISTADA EM 1808 | A LIBERDADE PROCLAMADA EM 1820.

Este monumento7, que nos atrevemos a comparar a um “nado morto”, parece ir ao encontro das palavras de Ramalho Ortigão8, que, na senda e sob a influência de Almeida Garrett e Alexandre Herculano, enfatiza a(s) debilidade(s) da arquitectura Oitocentista, onde imputa parte dessa responsabilidade à revolução liberal.

“O nosso pobre século não tem convicção social que vá para além de ámanhã. Não edificamos senão provisoriamente, para nosso proprio uso, e o mais rapidamente possivel. Se um edificio levasse mais de dez annos a fazer, arriscar-nos-hiamos a não precisar d’elle quando o tivessemos acabado, porque em dez anos estaria velha ou morta a idéia que lhe déra origem” (ORTIGÃO, 1887: 222-223).

E como sabemos foi precisamente o que veio aqui a acontecer, pois após a Vilafrancada (1823) a situação política degradou-se e muitos dos principais intervenientes viram-se forçados a procurar exílio. Domingos António de Sequeira, porém, permaneceu no país acreditando que o monarca (ainda) controlaria a situação. Todavia, umas semanas depois, teve a oportunidade de desfazer qualquer dúvida ao verificar a obra (em curso) do monumento do Rossio completamente arrasada pelos miguelistas, e o mesmo veio a suceder ao monumento análogo9 que nascia no Porto. E muita tinta nos mereceria se fôssemos fazer a reconstituição deste lastro temporal de cerca de meio século, onde revisitaríamos o lançamento de (novas) primeiras pedras, em julho de 1852, e, depois para o monumento tal como o conhecemos hoje, em 29 de abril 1867 – 1ª pedra esta que deu então lugar à «Inauguração solemne do monumento a D. Pedro IV10» no mesmo dia no ano de 1870 (Fot. de F. Racchini e João F. Camacho, in Photographias de Lisboa: vias públicas e monumentos. P. 14 – Col. org. em 1930 por Vieira da Silva,  Initiates file downloadGEO-MNL 131-G). No que diz respeito ao capítulo atinente à demolição também teríamos que o pluralizar (pois neste permeio assistíramos ao erigir do “Galheteiro do Rossio”11, conforme ficou conhecido, e à sua demolição); mas, e dado as várias iniciativas que estão a decorrer e que também concorrem para a melhor compreensão deste período histórico, vamos antes sugerir-lhe a visita virtual “O Monumento a D. Pedro IV” disponível no facebook do Museu de Lisboa (@museudelisboaEGEAC) a 29 de abril de 2020: <//font>encurtador.com.br/jCR19.

 

Para consultar o documento clique em:Initiates file downloadETN 6-G RES

 

1. In Dicionário da Língua Portuguesa 2013 (Acordo Ortográfico). Porto: Porto Editora. Pág. 187

2. Embora no trabalho de José Alberto Seabra Carvalho, com a sistematização diacrónica da correspondência epistolar de Domingos António de Sequeira, conste o dia 18 de agosto. Fonte:   https://acervo.publico.pt/culturaipsilon/noticia/uma-cronologia-com-base-na-correspondencia-do-pintor-1711917 [consultado a 20 de abril de 2020].

3. MARKL, Alexandra J. Reis Gomes (2013) – A obra gráfica de Domingos António de Sequeira no contexto da produção europeia do seu tempo. Doutoramento em Belas-Artes da Univ.de Lisboa, Fac. de Belas-Artes (onde se recomenda a consulta, sobretudo, dos capítulos 6 e 7).

4. Que ficou também conhecida por baixela Wellington, por ter sido oferecida pelo regente D. João VI ao 1º duque de Wellington a fim de o agraciar e homenagear pela sua conduta na qualidade de comandante geral das forças unidas que terão vencido Napoleão na Península Ibérica. O desenho que constituiu o estudo para o centro de mesa dessa baixela está presente no MNAA, com o n.º de inventário 1557, paralelamente o Museu integra o desenho de mais de meia centena de peças. Quanto à baixela em prata dourada a mesma está presente na Aspley House, em Londres e pode ser vista no endereço:  https://www.english-heritage.org.uk/visit/places/apsley-house/history/ [consultado a 20 de abril de 2020]. Se tiver interesse em saber mais sobre este assunto sugere-se, ELAFORCE, Angela e YORK, James (1992) – Portugal`s Silver Service: A Victory Gift to the Duke of Wellington. Londres: Museu V&A e OMAN, Charles (1954) – The Wellington Plate Portuguese Service. Londres: Museu V&A

5. Se tiver interesse em saber mais sobre este corpus de status quo, por assim dizer, da cidade de Lisboa pode consultar o vasto empreendimento “Elementos para a História do Município de Lisboa”, compulsado por Eduardo Freire de Oliveira.

6. Que em sentido diacrónico nos conduziria ao Palácio da Inquisição “que no período das invasões francesas cedeu algumas salas à regência” passando então “a ser conhecido por palácio da regência do reino. Com a ascensão do Liberalismo foi-lhe retirada a simbólica estátua da fé, passando o edifício a sede do governo provisório (…)”, e recuando até à origem levar-nos-á à Hospedaria Real, i.e., ao paço do Estau. Se tiver interesse em saber mais sobre este assunto sugere-se: RIJO, Delminda (2016) - “Palácio dos Estaus de Hospedaria Real a Palácio da Inquisição e Tribunal do Santo Ofício”, in Cadernos do Arquivo Municipal 2ª Série, N.º 5, pp. 19-49.

7. Que a 19 de abril de 1822 na Sessão das Cortes fica claro “os estorvos que [Sequeira] tem experimentado no desempenho da obra de que foi encarregado do Monumento do Rocio" (assente na documentação epistolar acima mencionada).

8. ORTIGÃO, Ramalho (1887) – As Farpas, A Vida Provincial, Tomo I, Lisboa: David Corazzi-Editor

9. Este sob o risco de Joaquim Rafael, conforme dá conta Sequeira (em epístola de 15 de Setembro de 1821)

10. Conforme noticiava o jornal Diário de Notícias de 30 de abril desse ano, podendo-se revisitar esse ethos que principiou com uma salva de 21 tiros. Disponível no endereço:   https://www.dn.pt/edicao-do-dia/30-abr-2019/inauguracao-do-monumento-a-d-pedro-iv--10846256.html [consultado em 27-04-2020]. A obra da autoria da Câmara Municipal de Lisboa. Arquivo Municipal, sob a coordenação de Mª do Rosário Santos, intitulada “Rocio-Rossio, terreiro da cidade” (1990) também fornecerá informação fotográfica/iconográfica de relevo.

11. A este respeito vide as fotografias presentes no Arquivo Municipal de Lisboa-Fotográfico, p.e., a referência  Initiates file downloadPT/AMLSB/POR/060365

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