Setembro

Carta da comadre de Sacavém ao compadre de Belém, dada à luz pelo mesmo compadre de Lisboa, para conhecimento do público em abono do crédito de seu compadre de Belém. - Lisboa : Na Nova Impressão da Viúva Neves, 1821. - 27 p. ; 21 cm. - Col. Vieira da Silva, VS 1268/C6, enc. com outras obras

Cota: MISC 60

Como esta Carta encerra a tríade documental inaugurada em julho, daí que tivéssemos  optado por uma escrita menos sistemática (e consequentemente com menos excertos). A opção por uma escrita mais parcelar deve-se ao facto de nos permitir  ir na peugada de um ou outro assunto que, no conjunto inter-comunicante das três Cartas, ainda careça de atenção.         


Esclarecer que desta feita introduzimos a Comadre de Sacavém1, que vem em abono de crédito do Compadre de Belém. Aliás, impõe-se elucidar que este documento é em si uma espécie de três em, pois a seguir à epístola da Comadre de Sacavém (Federica da Apresentação2) consta a carta do Senhor Capitão da Medalhinha e encerra com a resposta a esse mesmo Capitão (que lá foi para Viana).  


Recordar que a tónica satírica que tem como enfoque o jornal Astro da Lusitânia, mantêm-se sem alterações de maior. O tom geral de crítica às ordens religiosas continua bem expresso (relembrando-nos o propósito que Pombalteria já encetado e que pretendia contrariar esse “escape” excessivo que representaria a vida religiosa regular – onde desaguaria as filhas excluídas do casamento, nos grupos nobiliárquicos, e os filhos segundos, que assim “defendiam” a continuação do morgadio – situação a que não nos poupámos de referir e contextualizar no documento de agosto) com  as ambiguidades e alguma contradição a persistir4 nesta narrativa vintista. A crítica mordaz, temperada de ironia tal como as Cartas já nos têm habituado, aos corcundas ou ao vício e à ociosidade também se mantém, embora, agora, não se contemple tão só esse sentido de indigência, e nas entrelinhas se possa intuir (também) essa perseguição por a proto-oportunidade5 que a cidade oitocentista, em transição, tende a criar (págs. 11 e 12). Não é menos evidente, nas págs. 11 e 18, a denúncia do que se ia farejando, ou seja, um liberalismo de pendor elitista que dominava a teoria política dessa época – sobretudo por influência de Benjamin Constant e de François Guizot, para quem o voto cumpria uma função, que apenas deveria ser atribuída aos que fossem capazes6 de a desempenhar bem, estando o direito de voto condicionado pelas capacidades pessoais de responsabilidade ou de ilustração, esta última (indelevelmente) a remeter para a elite coimbrã (nome resultante da passagem pela Universidade de Coimbra). (…) porque como Çapateiro, não podia ter juízo, e como não he Bacharel, nem Doutor, etc. (…) (pág.11). Natália Antóniacorrobora, com o estudo de um caso concreto, esta ideia. Daí que a tenhamos convocado, pois atalhou-nos o caminho para conhecer a constituição da (nova) Câmara olisiponense8, que mereceu à autora as seguintes palavras: “torna-se evidente a influência da classe dos negociantes/comerciantes e dos proprietários, seguindo-se os juristas, ambas bem representativas de uma cidade burguesa. Não temos elementos da nobreza nem do clero, entre os membros da Câmara Constitucional. Tudo indicava que a Revolução Liberal e burguesa tinha triunfado em Lisboa!” (2000: 51-2). As Cartas também inseriram outra problemática, que já foi amplamente identificada por Miriam Halpern Pereira9, afinal a historiadora tem seguido de perto a questão das Corporações, e a sua subjacente e paulatina perda de privilégios (materiais e simbólicos). Universo temático, que, grosso modo, podemos situar na amplitude compreendida entre os mesteres e os vendilhões. E que talvez ousássemos afirmar que não terá dado “menos dores de cabeça” aos deputados vintistas do que as questões do espectro devocional-religioso, isto a aferir pela quantidade de petições de todo o território do reino de Portugal, Brasil e Algarves que assomaram às Cortes (e aqui fica expressa a liberdade de petição a que, já, tínhamos aludido na nota introdutória do projecto). O historiador Nuno Gonçalo Monteiro10 (1985) foi o nosso esteio para acrescentar alguma elegibilidade à, já longa, prerrogativa dos Pescadores da Pedreneira11 (pág.15, que a somar a Nazaré e S. Martinho reflecte a bacia hidrográfica do Alcoa, que, lato sensu, corresponde aos “marítimos” da comarca de Alcobaça). Pois esta comarca e a de Santarém, nomeadamente com Reguengo da Valada, talvez tenham sido as protagonistas dos conflitos advindos da aplicação da legislação liberal (os designados decretos dos banais e dos forais) – destaque para o foral da Pederneira que particulariza os direitos sobre o pescado e a circulação de mercadorias.      


Sem contrariar o que dissemos acima, mas porque seria erro imperdoável prosseguir sem trazer este elucidativo excerto com que a Comadre de Sacavém enceta a Carta, Saberá o meu Compadre e Senhor, muito da minha veneração (…) que por esta Villa de Sacavém, tem passado três Regimentos de Tropa de Linha, os quaes em sua passagem manifestavam apena, e sua saudade que todos levavão do meu Querido Compadre de Belém (…) (pág. 5), escusado será dizer que temos nova alusão às três invasões francesas (e, implicitamente, aos danos que daí advieram).  Logo no início quando dizíamos que esta carta é “um três em um”, e se falava de um Capitão da Medalhinha somos forçados a socorrer-nos, outra vez, dos esclarecimentos de Isabel Vargues (1997), é a historiadora quem esclarece sobre esta simbologia vintista do «laço nacional», azul e branco, “símbolo político que distingue o seu portador na qualidade de cidadão liberal”, e “como outra faceta do legado cultural e político vintista é a medalha para uso do deputado (…), a medalha circular, tendo no anverso uma gravação central de um símbolo clássico (e maçónico), o triângulo com o símbolo da Providência, de cujos ângulos partiam as inscrições das palavras «Patriotismo», «Razão» e «Verdade»” (págs. 283 e 286, passim), daí que não seja de estranhar o uso exaustivo dessas palavras, merecendo menção até na datação da epístola, Lisboa, 16 de Janeiro anno da verdade, e da Liberdade civil, de 1821.

Não podemos avançar mais sem mostrar, ainda que não passe de breve e verosímil pincelada, a justificativa da atribuição da escolha de Sacavém para epíteto da dita Comadre. Baseamo-nos nas Memórias , sine ira, et odio (pág. 60), de José Maria Xavier de Araújo (deputado às Cortes, eleito pela Província do Minho, onde ocupava o lugar de provedor da Comarca de Viana do Castelo), figura que assumiu relevo na Revolução e que nos esclarece, de forma relativamente clara, que Sacavém  terá representado a garantia de unidade e o entusiamo público necessários à prossecução deste empreendimento liberal. 
Constatámos também que falta enquadrar a batalha de 11 de Novembro que é referida na pág. 10 deste documento. E que corresponde ao movimento que ficou cunhado de “Martinhada” (por ter ocorrido no dia de S. Martinho), golpe político-militar, encabeçado pelo general António da Silveira Pinto da Fonseca, que acabou por traduzir os antagonismos e contradições (políticas, sociais e, até, pessoais) que se foram instaurando no seio da massa revolucionária, e que só foi serenado no dia 17 de Novembro. Mas ficarão tão mais enriquecidos se aceitarem ser transportados para esse célebre dia por José Maria Xavier de Araújo (2006) [1846],  


“Amanheceu pois o dia 11 de Novembro temeroso, e carregado! Logo de manhã a artilharia foi postada no Rossio, a Infantaria de linha no Passeio Público, e praça da Alegria, a cavalaria nas ruas adjacentes; a divisão ligeira no Terreiro do Paço; que espectáculo para um pintor de História! A bela Praça do Rossio cheia de canhões apontados para as ruas principais; uma brilhante Infantaria, e Cavalaria protegendo-os, e no meio deles o general Cabreira de luvas de anta até meio braço, e de colar de folhos em roda do pescoço, à maneira dos portugueses antigos, dando ordens com a veemência militar, que lhe era própria! Gaspar Teixeira apareceu seguido de um numeroso Estado-Maior, subiu ao Palácio da Inquisição, convocou um grande Conselho de Oficiais Superiores, e Comandantes de Corpos, e lhes propôs as seguintes medidas de governo – que se aclamasse a Constituição de Espanha, com as modificações que as Cortes lhe fizessem; que se nomeassem mais quatro membros para o Governo, e se encarregasse o Ministério do Reino e Fazenda a um membro da Junta Preparatória – assim se acordou, acrescentando o Conselho, que ele Gaspar Teixeira fosse encarregado do Comando em chefe do exército. Feito isto, se retiraram os oficiais aos seus corpos, e entre eles o general Sepúlveda, que tinha assistido ao conselho e assinado a acta dele. Sepúlveda, chegado à divisão ligeira, que comandava, lhe ordenou uma manobra, a qual, observada por Gaspar Teixeira que se achava em uma janela do palácio fronteiro à rua do Ouro, lhe pareceu hostil. E em consequência chamou a toda a pressa o coronel Galvão e lge oedenou que fosse ao Terreiro do Paço observar os movimentos da divisão ligeira, e outros oficiais ao Castelo conduzir pólvora e murrões. Assim se executou. O general Cabreira mandou carregar as peças com metralha, avizinhou-se às embocaduras das ruas e mandou acender os murrões. Este espectáculo horrorizou o numeroso povo que assistia à revista e se retirou, para não assistir à colisão entre tropas; mas daqui começou uma tremenda reacção moral contra o dia 11 . As sociedades secretas declararam-se contra ele e usaram dos meios competentes; as cartas anónimas choviam sobre Gaspar Teixeira e chefes militares (…); um jornal de grande voga nesse tempo – O Astro da Lusitania – trovejava contra o movimento militar; o povo aplaudia o Astro (…)” (Págs. 55-57).  

Para consultar o documento clique em: Initiates file downloadMISC  60

 

 

1.  Pseudónimo que não nos foi possível descortinar mesmo depois de consultar o Dicionário de pseudónimos de Albino Lapa e o Diccionario bibliographico portuguez de Innocencio Francisco da Silva.
2. Que na pág. 7, terminus da sua epístola, avança um sugestivo e humorístico: “P.S. O Afilhado precisa de botas, veja se tem por lá uns xenelinhos velhos”. 
3. Vide, MONTEIRO, Nuno Gonçalo (2008). D. José, Na Sombra de Pombal, Rio de Mouro: Temas e Debates.
4. Pois a posição contundente da extinção, dura e crua, era uma posição que ninguém assumia em pleno (o texto final da reforma, com inúmeros “avanços e recuos” seria depois aprovado a 18 de outubro de 1822), ainda que dentre os deputados do Congresso, onde podemos destacar nomes como Barreto Feio; Borges Carneiro; Pinto de França; Correia de Seabra; Serpa Machado, se reconhecessem posicionamentos mais moderados do que outros. Até porque a secularização colocava à sociedade, que se queria liberal, problemas eminentemente práticos, como o de sustento dos regulares (tanto que as Cortes em 28 de abril de 1821 emanaram ordem de se proceder ao inventário dos rendimentos dos conventos). Daí que os deputados, na sua maioria, tivessem adoptado posturas mais cautelosas que podemos simplificar no aforismo de dar um só sentido aos portões – o de saída, proibindo assim (novas) entradas.
5. Permitam convidar à (re)leitura d`Os Fidalgos da Casa Mourisca, de Júlio Dinis. E antes de chegarmos às personagens de Maurício e Gabriela (a baronesinha de Souto Real), de quem nos lembrámos imediatamente quando falámos desse “perseguir a proto-oportunidade” – que corresponde, conceptualmente, à demanda por um papel social de exercício de influência política (dado que Lisboa pode antecipar oportunidades a Maurício, mais enquadráveis no seu carácter de bem falante e mestre no galanteio; que efectivamente chega a embaixador) – é imperativo revisitar esse tempo diegético de transição Oitocentista atravessado pela dicotomia do velho e novo Portugal, que contrapõe o regime absolutista ao liberalista, que os romances dionisinos resolvem com a regeneração sociológica moralizante que entrecruza espaços sociais e funções sociais que, depois, se vêm a complementar. Quem não se recorda do velho fidalgo empedernidamente absolutista - D. Luís Negrões de Vilar de Corvos e de Frei Januário (administrador da Casa Mourisca), que tinha como foco quotidiano a comida, pois “ou estava a comer ou a pensar comer”. Por sua vez, Tomé da Póvoa (e família, destaque para a filha Berta da Póvoa - a traduzir esse “elevador social” que é conseguido graças à educação citadina, que permite a posterior aproximação à fidalguia Mourisca) remete, inequivocamente, para conquistas do Liberalismo, na medida em que contraria a imobilidade social que caracterizava o Antigo Regime. Esta síntese, que acaba por espelhar a visão progressista do próprio Júlio Dinis, é conseguida com Jorge (filho de D. Luís) ao ter sido capaz de consciencializar a mudança dos tempos (no plano simbólico tornam-se célebres as conversas com o velho egresso, com seu pai, e com o proprietário em ascensão – Tomé da Póvoa, ex- vassalo da Casa Mourisca e seu (novo) mestre). E nesse sentido, o casamento de Jorge e Berta é mais do que o matrimónio entre um homem e uma mulher, é, essencialmente, a tradução do pensamento progressista que revitaliza a aristocracia aburguesando-se. Para se compreender melhor esta semântica de funções sociais (que se complementam) pode (re)visitar-se o conceito de “produção antroponómica” (1978) do etno-sociólogo Daniel Bertaux na obra Destinos pessoais e Estrutura de Classes, que, e incorrendo no erro de simplificação excessiva, corresponde “à produção de energia dos seres humanos, não como seres biológicos, mas como seres sociais”. Em suma, convocámos Júlio Dinis pois que neste (e noutros) romance(s) apresenta-nos este Portugal agrário em metamorfose – do declínio dos morgadios (que aludimos na ficha histórica de Agosto) ao empoderamento da plebe, que cria a burguesia rural (que veio, depois, dar à sociedade aquilo que podemos apelidar como as profissões liberais – médicos, advogados, contabilistas, etc.).          
6. António Manuel Hespanha, na obra (canónica) Guiando a Mão Invisível – Direitos, Estado e Lei no Liberalismo Monárquico Português. 2004. Coimbra: Almedina, é claro a esse respeito.
7. Natália Antónia (2000) - “A eleição da primeira Câmara Constitucional de Lisboa”, in Cadernos do Arquivo N.º 4, pp. 47-53. Disponível em:
http://arquivomunicipal.cm-lisboa.pt/fotos/editor2/Cadernos/cad4/cad04.pdf
8. Informação que compulsou com recurso às Actas da Eleição de Vereadores e Procuradores da Câmara de Lisboa, Brás da Costa Lima / Presidente / Negociante; António Tomás da Silva Leitão / Vereador / Desembargador;  João Rufino Alves Basto / Vereador / Negociante; Joaquim Gregório Bonifácio / Vereador / Negociante-Ourives; Jacinto José Dias de Carvalho / Vereador / Negociante; Manuel Ferreira Lima / Vereador / Mestre-de-Obras; João António Alves / Vereador / Proprietário; António José de Sousa Pinto / Vereador Boticário; Manuel Correia de Faria / Vereador / Advogado; Pedro Alexandre Cavroé  / Procurador / Artista-Marceneiro.
9. Demos particular relevo a estes trabalhos: PEREIRA, Miriam Halpern (1998) - “Artesãos, operários e o liberalismo. Dos privilégios corporativos para o direito ao trabalho (1820-1840)”, in Ler História, N.º 14, pp. 41-86; e PEREIRA, Miriam Halpern (1992) - Negociantes, fabricantes e artesãos, entre velhas e novas instituições. Lisboa: Edições Sá da Costa.
10. Que em cerca de meia centena de páginas guiou-nos numa síntese capaz de nos apresentar este (amplo) universo (mais fragmentado e intrincado do que aquilo que podíamos imaginar) dos direitos foraleiros e dízimos. MONTEIRO,  Nuno Gonçalo (1985) – “Lavradores, frades e forais. Revolução liberal e regime senhorial na comarca de Alcobaça (1820-1824)”, in Ler História, N.º 4, pp.31-87.
11. Assunto que tem sido uma constante, recordemos, a título de exemplo este excerto inserto na Carta de julho (recordando que expressámos a comunicabilidade destes três documentos): “(…) exigindo-lhes contas de se ter arriscado a repreender rebuçadamente o Governo, por não ter já levantado os direitos do Pescado aos pescadores da Pedreneira; assim como os terços, quartos e oitavos aos moradores de Alcobaça, & (…); pois diga-me Senhor Compadre, se o Governo lhes tivesse já levantado estes direitos, vê-los-híamos nós estar todos os dias de Inverno às moscas na Ribeira do peixe, sem quererem ir ao mar, fonte da sua riqueza, só por birra contra a Constituição, que se hade fazer? Ah, Senhor Compadre, se istose tivesse já feito, veria V. m. em breve toda esta Capital convertida em hum industrioso povo de Saveiros, que não quereria viver senão sobre as águas do Oceano (…)” (pág.11). 
        

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