Aspetos do quotidiano de Lisboa de Quinhentos a partir das Cartas de Luís Vaz de Camões
Em 1524, ano do nascimento de Luís Vaz de Camões, Lisboa havia ascendido ao palco das capitais europeias mais poderosas, tornando-se numa cidade complexa e cosmopolita. Essa fora uma das consequências da expansão ultramarina que, por sua vez, promoveu importantes movimentações demográficas, acelerado crescimento da população e desenvolvimento urbano. Premissas que acentuaram outros fenómenos sociais desafiadores como a violência urbana e criminalidade, o engrossar das “margens” da sociedade e o agravamento da insalubridade urbana, favorável à propagação de epidemias e doenças, como a peste de 1580, apontada como possível causa de morte de Luís Vaz de Camões.
As cartas que a tradição editorial atribui a Camões são a fonte histórica a partir da qual se propõe uma leitura de Lisboa, a cidade que o poeta conheceu e que de algum modo representou na sua expressão mais íntima. A prosa camoniana é composta por cinco cartas. Três conhecidas como as Cartas de Lisboa “Uma vossa me deram…” (carta III), “Quanto mais tarde vos escrevo…” (carta IV), a que se acrescentou a controversa “Por que nem tudo seja falar-vos de siso…”(carta V). O conjunto epistolar é completo por “Esta vai com a candeia na mão…” (carta I) e “Desejei tanto uma vossa…” (carta II) escritas, respetivamente, de Ceuta e da Índia (Cidade, 1985; Franco, 2019).
Narrativa que incorpora o olhar de Camões, porém, um olhar imbuído de “um lado não heroico, nem principesco do Poeta”( Almeida, 2011: 244), antes assente nas emoções de um homem ainda jovem, embora experiente, urbano, mundano e inquieto.
A cronologia e os cenários emblemáticos da vida do Poeta estão maioritariamente definidos pela historiografia, porém, as cartas encerram singularidades pouco divulgadas do seu quotidiano e da sua Lisboa. O Paço da Ribeira, o Rossio, a prisão do Tronco, as Portas de Santo Antão e até o cemitério de Santana são lugares consagrados na memória de Camões bem como a participação em eventos da vida cívica, religiosa e no círculo cortesão, como a procissão do Corpo de Deus, ou o alistamento militar.
Como também o são os cenários de uma juventude exaltada e boémia em bandos de jovens rivais que causavam tumultos, da frequência de bordéis e de festas populares em folias e pagodes.
O tempo que viveu em Lisboa decorreu, em grande parte, sob o reinado de D. João III. Um cenário de magnificência no Paço da Ribeira e no Terreiro do Paço, onde brilhavam o luxo e a ostentação, e o conhecimento fluía do contacto com as novidades e inovações oriundas de todo o mundo conhecido (Pimentel, 1991: 233). Uma corte que incentivava o ambiente palaciano e um círculo cortesão animado por festas, bailes, peças teatrais, jogos, récitas de poesia e leituras, propícios à convivialidade entre homens e damas, e dos quais Luís de Camões desfrutou na sua condição de nobre. Já então se diferenciava pela erudição, expressando em redondilhas opiniões e sentimentos a damas da corte, sendo disso exemplo o poema Natércia que dedicou a uma dama de estatuto social superior por quem se enamorou.
Contudo, a face da cidade a que deu primazia na prosa foi a Lisboa noturna e urdida nas travessas e becos dos bairros populares, das tabernas e casas de alcoice onde a transgressão e a libertinagem eram reinantes. Onde foi sagaz observador e ator, num vibrante e perigoso ambiente dos bandos rivais, da folia e dos bordéis das ruas mal-afamadas, donde viria a colher algumas das agruras que a vida lhe reservou, como a prisão e o degredo para a Índia.
Dois espaços dissonantes de uma cidade, ambos conhecidos e vividos por Luís de Camões, dos quais colheu instantes que transpôs para as cartas que dirigiu a amigos, com os quais confidenciava de forma desinibida. Da sua intimidade, mas sobretudo de lugares, pessoas e funções do quotidiano urbano – da política, à guerra, ao crime e prostituição – a conteúdos rotineiros e singulares como o vestuário, a gastronomia ou a convivialidade.
Luís de Camões mescla nas suas cartas factos e notícias, a maioria de índole passional, tecendo considerações entre o anedótico e o obsceno. O tom dominante é o da crítica e do escárnio, por vezes aligeirados com recursos metafóricos. São menos sobre si, e mais sobre pessoas conhecidas ou com quem se relacionava, avultando acontecimentos menos abonatórios sobre mulheres, religiosos e cortesãos. Como pano de fundo a latente conflituosidade urbana, e nalgumas circunstâncias o próprio exílio.
Sobre si, alguns episódios, simbólicos da sua existência, como o envolvimento em bandos e desacatos “Dizem que é passado nesta terra um mandado para prenderem a uns dezoito de nós, e porque nestas pressas grandes sem vós não somos nada, sabei que deste rol vós sois o primeiro, como sempre fostes em tudo. A razão dizem que é por um homem fidalgo, que dizem que foi espancado uma noite de São João pelo senhor João de Melo, e ele saberá se é assim” (Carta IV). O conflito entre grupos rivais foi, de facto, marcante no seu percurso. Um envolvimento gerador de tensão, de luta e a penas de prisão. Continua, informando ao amigo que o “Vosso comborço Denis Boto foi espancado nesse ressio uma boca da noite, e não se sabe donde veio este desastre, mais que quanto os homens alcançam por sua lança, mas não é pera espantar se isto de longe se guarda, por quem por amores de Lia dá isto e mais se há de passar. E por que este senhor não cuidasse que era solus peregrinus in Jerusalem, lhe fez companhia daí a uns dias Gaspar Borges Corte-Real, à porta de Pêro Vaz. Dizem que com uns paus o sacudiram como oliveira” (Carta IV).
A violência física e sexual está presente em toda a prosa, que por vezes intercala com outros aspetos do quotidiano. Reúne, por exemplo, num único relato sobre intriga, aliciamento e amores proibidos, metáforas com quadrilhas de criminosos, iguarias da doçaria portuguesa e a corrupção praticada pelo oficialato régio na governação ultramarina “Simão Rodrigues paga soldo aos maiores matadores desta terra, os quais já de in illo tempore lhe tinham cozinhado a morte. Este soldo se paga no tesouro, scilicet em talhadas de marmelada e púcaros de água fria, com uns debruns da vista da senhora sua irmã. Que ainda que esta mercadoria seja defessa, pelo senhor da fortaleza, nestas viagens da China, mais se ganha no furtado que no ordenado” (Carta IV).
Na carta V, dando notícia do regresso a Lisboa de uma célebre meretriz castelhana, a Senhora Bárbora, faz uma associação à decadência de Lisboa, na qual a prática de prostituição avultava “Ó má Lisboa, que é um ninho velho, e domicílio antigo de putas antigas, e aqui como dizem das cegonhas, as moças mantém as velhas”. Intercala um discurso mais mordaz com atualidades, como a mobilização para a formação de armadas militares, tecendo considerações sobre os seus alistados, que eram alvo fácil de alcoviteiros, e assíduos frequentadores de casas de alcoice “como agora anda tudo de levante com estas armadas, e na água em volta pesca o pescador, elas também d’armada dão por esses coitados que hão de ir pera fora sobre as águas do mar, uns debruadinhos d’arte, a quem como sabeis pagam soldos e moradias adiantadas, com outras mercezinhas […] depois de lhes vazarem as bolças, de bem vestidos e louçãos que andam, os tomam e lhes despem até as couras golpeadas” (Carta V).
O cenário de bordéis e casas de alcoice é, pois, recorrente, noticiando sobre mulheres conhecidas do interlocutor, as quais agrupa em função da exposição de cada uma, desde as mais notórias e publicas, às mais recolhidas e que “faziam mal de si” com o apoio de alcoviteiros “E das putas claustrais as que mais andam agora nos pelouros de seus folgares, são a Tarifa, a Surradeira, a Marquesa, a Sintroa, Antónia Brás, e as que chamam as folionas. “Ay” também outras Claustrais, mas mais autorizadas, as freiras, Bárbora, Luzia e outras desta laia, “ay” outras inda de mais autoridade, estas dão sua casa aonde se pagodeia, por que com as pessoas não servem, por serem já velhas, assim como Guiomar Mendes, Felipa de Bairros, Beatriz Flamenga, com suas filhas et cum socijs suis e às casas destas se vão apontar toda a imundícia destes que digo” (Carta III).
Um mundo violento que não floreia. Antes pelo contrário, a mesma carta noticia que Antónia Brás, uma dessas mulheres que apelida de “ninfas de água doce” fora severamente castigada. Para o ilustrar, inclui no verso o talabarte (alça ou cinturão) que serviu de objeto de punição, numa imagem que é expressão da dureza da agressão sofrida, traduzindo desta forma a vulnerabilidade feminina neste contexto social (Carta IV):
Um talabarte zunia
na dama por que foi peca;
ela com dor dizia:
Atentai mano Fonseca,
la terrible pena mía.
O mundo da prostituição é enfatizado pela teia de intervenientes e ambientes - das meretrizes e frequentadores, às alcoviteiras de escada, aos protetores armados, às rivalidades e à participação em folias e pagodes, com banquetes e abundância de vinho.
Os temas mais ligeiros da epistolografia camoniana, e ainda assim com observações maliciosas, reportam-se à evocação de lugares de Lisboa como templos, bairros e espaços comerciais; a diversidade da sociedade lisboeta, que incluía vários grupos étnicos e religiosos, e outros, transversais e comuns a toda a população, como a alimentação ou as formas de trajar.
A descrição do vestuário é uma matéria assídua que o poeta integra de forma clara ou subtil nas cenas descritas, como reforço do escárnio ou em tom acusatório. Os trajes e acessórios que dão mais corpo aos episódios narrados, correspondem aos figurinos em voga. Sobre os homens do seu meio que procuravam atenção feminina, eleva a intriga amorosa ao ridículo “um vereis encostado à espada com o sombreiro até os olhos, e a parvoíce até os geolhos, a cabeça entre os ombros, capa curta, as pernas compridas, nunca lhe falta uma conteira azulada que luz ao longe. Estes quando andam carregam nas pernas, e quando vão pelo sol, olham a sombra, e se se vêm bem-dispostos, dizem que teve Narciso de se enamorar de si; têm o andar pausado, torcem os sapatos pera dentro”(Carta III). Neste episódio acaba por descrever o essencial da indumentária masculina nobre: espada com conteira azul, sombreiro, capa curta, sapatos.
O traje feminino é, de igual modo, integrado na narrativa, mas mais uma vez com o objetivo de ilustrar comportamentos recriminatórios, como a hipocrisia ou a provocação. Desfaz a imagem de devoção e moderação de mulheres beatas, que associadas a uma conduta modesta e piedosa, de frequentadoras assíduas das igrejas de Lisboa envergando “grandes capelos, hábitos de sarja, contas na mão”, Camões acusa de farsantes pois sob os mantos beatos, escondiam esplêndidos trajes, inapropriados em mulheres devotas e recolhidas “e o cu ladrão, porque debaixo disto, achareis mantéus debruados, gravins lavrados, gibões brancos e justos” (Carta III).
Sobre o vestuário das que apelida de “damas de aluguer”, descreve um traje excecional e proibido, num passeio de um grupo de cavalheiros e damas que foram a Alcântara, indo elas “ao varonil, em trajo de homens cavalheiros em quartaos”, isto é, em cavalos corpulentos “que lhe eles buscaram muito guerreiros, com seus penachos recamados de ouro e prata, por ir a cousa meia em prata e meia em Ceitis”. Referindo-se à cortesã mais velha, “por guardar mais o decoro e majestade de Madre, ia de Andilhas”, isto é, sentada numa armação de madeira que era colocada sobre a cavalgadura, “porém louçã e muito enfeitada, e coberta com uma capa de escarlata” (Carta V). A descrição da indumentária enriquece o quadro cru e socialmente reprovável de um grupo de homens e de mulheres trajando de homem e lideradas por uma meretriz mais velha revestida de vermelho, se deslocaram à Horta Navia, em Alcântara para fins lascivos.
A indumentária é, também, pretexto para ironizar a conduta de frades de diversas ordens religiosas. Apresentados como “os Cupidos destas”, das beatas, ilibados por andarem “anexos a mulheres fidalgas, pela conversação das confissões”. Porém, Camões ressalta que a veneração associada à indumentária dos eclesiásticos não os torna menos homens pois “não são uns capuzes frisados, e uns pelotes [vestuário de grandes abas] com petrinas [cinto com fivela] ao olivel do embigo, e pantufos de veludo, estes medram por sesudos”, continuando que, não obstante a aparência “também amassam neste forno frades de São Francisco, que andam com as calças desatacadas e lombos roliços”. Concluindo que, “eu digo que jogam de todas as armas, porque todos somos del merino [carneiro de origem espanhola]” (Carta III).
Os têxteis vindos do Oriente e integrados nos hábitos dos portugueses, ou a menção a acessórios como chapéus, calçado e armas ilustram também alguma da narrativa das Cartas, enriquecendo, sempre com sarcasmo, as novidades que transmite aos amigos distantes. O chapeirão ou manto, elemento masculino muito usado pela população urbana é referido na carta II, “Esta vai com a candeia na mão... “:
Dava-lhe o vento no chapeirão,
Quer [lhe] dê, quer não
Bem o pode revolver
Que o vento não traz mais fruito
E mais vento é sentir muito,
O que, enfim, fim há de ter.
O melhor é melhor ser
Que o vento no chapeirão, Quer lhe dê, quer não.
Novamente as “ninfas de água doce” que figuram na metáfora da tafecira, uma espécie de chita com dois lados, fabricada na Índia, de modo a caraterizar as suas estratégias e caráter dúplice “Dizem que Francisca Gomes, que [já] não amassa no forno aonde soia, por que veio outro mercadante, competidor, e fez a cama fora do leito chorando. Gabai-me esta estratagema, que é de ambas as bandas como tafecira”(Carta IV).
Por último, uma nota para o entretenimento que, não obstante a sua essência, remete novamente para cenários de grande violência. Na carta “Quanto mais tarde vos escrevo” a breve referência a uma tocata antiga que associa ao castigo de outra “ninfa”, Antónia Brás. A música mangana integra o verso no qual relata a agressão (Carta IV):
Aonde com triste som;
lhe cantaram a mangana;
e com esta dor profana;
gritos dava de pasión;
Reina troyana.
Tocar e cantar no feminino era, ainda, conotado como uma prática indecorosa, por essa razão seria mais acessível nos meandros da prostituição, como forma de atração “e manda tanger e cantar a Senhora Bárbora, descantando sobre o Monte de Sião, e “de superJudeorum turbam” (Carta V).
Na carta da Índia (Carta II), apesar de escrita no Oriente, o poeta inclui informações de relevo sobre a cidade de Lisboa de quinhentos, mencionando uma diversão, muito difundida e popular entre o povo de Lisboa “Enfim, Senhor, eu não sei com que me pague saber tão bem fugir a quantos laços nessa terra me armaram os acontecimentos, senão com me vir para esta, onde vivo mais venerado que os touros da Merciana, e mais quieto que a cela de um frade pregador”. Lamento que alude às apreciadas corridas de touros de manadas da Confraria de Nossa Senhora da Piedade da Merceana que animavam muitas festas e romarias.
Em breve referência ao contexto religioso, inclui a realização de procissões que eram, invariavelmente, um momento alto e um costume importante na vivência urbana. Na mesma carta da Índia (Carta II), Camões considera as notícias que dá sobre as damas da terra “obrigatórias a uma carta, como marinheiros à festa de São F[rei] Pero Gonçalves”. Isto é, à romaria de São Pedro Gonçalves, São Telmo, padroeiro dos mareantes e um culto muito popular em Lisboa no século XVI.
conjunto das cinco cartas em prosa revela aspetos do quotidiano e dos lugares em que Luís Vaz de Camões se movimentou. Camões, que tal como os outros homens viveu uma vida comum, pensou como o comum dos homens e dessa forma se comunicou com os amigos. Foi um homem do seu tempo, um mortal que foi também o criador de uma obra poética sublime, que o eternizou.
Delminda Rijo
Bibliografia
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CAMÕES, Luís Vaz de, Obras completas, vol. III Autos e Cartas. Pref. e notas de Hernâni Cidade. 4.ª ed., Lisboa, Livraria Sá da Costa Editora, 1985.
FRANCO, Márcia Arruda, A quinta carta em prosa de Camões: “Porque nem tudo seja falar-vos de siso”, Revista do Núcleo de Estudos de Literatura Portuguesa e Africana da UFF, v. 11, nº 23, 2019, pp. 43-56.
PIMENTEL, António Filipe, "Poder, corte, e palácio real: os palácios manuelinos e a reforma quinhentista da alcáçova de Coimbra", in Atas do Congresso “História da Universidade”, Coimbra, 1991, pp. 231-253.
SENOS, Nuno, "A coroa e a igreja na Lisboa de Quinhentos", in Lusitania Sacra, 2ª série, nº 15, 2003, pp. 97-117.