No ano de 1499, o Almanach nova plurimis annis venturis inserventia 1499-1531, de Johannes Stoeffler e Jakob Pflaum anunciava para o ano de 1524 (Ephemerides anno virginei partus 1524, fl. 387) um segundo dilúvio universal, em virtude da conjunção do Sol e da Lua, sob o signo de Peixes1. A combinação entre o prestígio dos autores e a rápida difusão permitida pela tipografia contribuiu para que o prognóstico do fim do mundo para 1524 provocasse uma crescente ansiedade em muitos pontos da Europa culminando em verdadeiros movimentos de pânico nos inícios daquele ano. “Esta´ansiedade escatológica´ originou ainda uma importante multiplicação de obras que reatualizaram uma polémica já antiga sobre a validade dos juízos astrológicos”2.
A polémica em torno da astrologia deixou também rasto em Portugal. Em 1523 foi publicada a obra intitulada Contra os juízos dos astrólogos, de autoria de Frei António de Beja, monge da Ordem de São Jerónimo.
“[…] não ousam alguns edificar casas, nem fazer outros edifícios, com medo que hão pouco e durar, e outros buscam lugares postos em altos montes onde pera o dito ano se vão e acolham. Outros imaginam e cuidam em seus pensamentos fazer navios e arcas em que se metam e escaparem a tanta tormenta […]”3.
A obra, encomendada e financiada pela rainha D. Leonor, viúva do rei D. Manuel I, foi escrita em português com o objetivo explícito de esclarecer sobre a falsidade da astrologia divinatória. A sua edição testemunha o empenho da corte de D. João III em neutralizar o alarmismo gerado pelas profecias e tornar pública a falsidade da astrologia divinatória. Frei António de Beja apresentava uma argumentação fundamentada tanto no humanismo como na filosofia de pensadores gregos e latinos e em interpretações bíblicas, numa crítica astrológica voltada para a ação pragmática dos intelectuais na refutação do determinismo astral em geral, e dos prognósticos sobre a conjunção de 1524 em específico4.
O diluvio não se deu, mas nem por isso deixou de abanar as consciências e mostrar como se comportava a ansiedade dos homens em épocas de crise. O tom de Garcia de Resende referindo o episódio permite-nos ter uma noção da perturbação que provocou na época, também em Portugal, o prognóstico do dilúvio de 1524, dando conta de um mal-estar que, se não era exclusivo do reino, também se fizera sentir por estas paragens5:
“Vimos a astrologia
Mentir toda em todo o mundo,
Que toda junta dizia
Que em vinte e quatro havia
De haver dilúvio segundo;
E seco vimos o ano,
E bem claro o engano
Em que astrólogos estavam,
Pois dantes tanto afirmavam
Por chuvas haver grã dano6.”
Os tempos difíceis que se viviam terão contribuído para aumentar a agitação e ansiedade que caraterizou os primeiros meses do ano de 1524. Portugal sobrevivia a consecutivos maus anos agrícolas, anos seca e esterilidade dos campos, a grave crise de fome e a surtos de epidemias que alastraram a todo o reino a partir de Lisboa e que vitimaram o próprio D. Manuel I. Sucedeu-lhe o filho mais velho, D. João III, aclamado rei, a 22 de dezembro de 1521, na igreja do Mosteiro de São Domingos, em Lisboa. O novo monarca recebeu de seu pai um vasto e disperso império – ilhas atlânticas, costas ocidental e oriental de África, Índia, Malásia, ilhas do Pacífico, China e Brasil, e possivelmente Austrália.
A conjuntura depressiva marcou o início do reinado de D. João III, cuja recuperação foi dificultada pelos sucessivos surtos epidémicos. Por carta de 11 de abril de 1523, escrita em Almeirim, dirigida a câmara da cidade de Lisboa, onde a peste se agravara, ordenava que se estabelecesse fora dos muros da cidade dois cemitérios para “que os mortos dos ares da peste se lancem fora dela”7.
O porto de Lisboa frequentado por grande número de embarcações, constituiu um local de encontro de marinheiros e mercadores provenientes de diversas latitudes, o que facilitou a entrada na cidade de surtos pestíferos e a sua propagação a todo o reino. A preocupação do monarca em preservar a cidade e em atuar em caso de peste, leva-o a enviar o desembargador Pedro Vaz à península itálica para recolher informações sobre as medidas que nesta região se seguiam na luta contra as epidemias. Destas diligências resultou, em 1526, um documento redigido por Pedro Vaz, com base na sua experiência de Roma e de outras cidades italianas, que, em trinta e cinco itens, identifica as providências que deveriam ser tomadas em caso de peste8. Este Regimento da Saúde de D. João III constitui “o mais antigo regimento do serviço de saúde, de que temos conhecimento” adaptado à cidade de Lisboa, transformado em documento normativo, de aplicação a todo o reino 9.
Em 1524, o rei, ainda solteiro, está em Évora, onde passou a maior parte do ano e onde faz longas estadias nos anos seguintes. Daqui, iniciam-se as diligências para o seu casamento. Para rainha, é escolhida D. Catarina de Áustria, irmã do imperador romano-germânico Carlos V, rei de Espanha e dos Países Baixos. Um casamento organizado com o intuito de fortalecer a ligação entre as monarquias europeias, propósito que será reforçado, no ano seguinte, com o casamento da princesa D. Isabel, irmã de D. João III, com o próprio imperador.
Em termos ultramarinos, o rei disputa com Espanha, a posse das ilhas Molucas. Em 1524 organiza-se a Junta de Badajoz-Elvas para solucionar a questão. Foram nomeados, por cada coroa, três astrónomos ou cartógrafos, três pilotos e três matemáticos que se reuniram várias vezes em Badajoz e Elvas, para determinarem a localização exata do antimeridiano de Tordesilhas, mas sem chegarem a acordo. O conflito surgira em 1520 quando as explorações marítimas de ambos os reinos ibéricos atingiram o Oceano Pacífico, pois não fora estabelecido o limite a leste no Tratado de Tordesilhas (1494). A Conferência de Badajoz não resolve o conflito. Só mais tarde, com o Tratado de Saragoça, assinado a 22 de abril de 1529, entre D. João III e o imperador Carlos V (ou Carlos I de Espanha), a contenda se resolve, desistindo a Espanha das suas pretensões.
D. João III, ao longo do seu reinado, fortaleceu a posição portuguesa na Ásia com a anexação de cidades como Diu, Bombaim, Baçaim, Macau. Em 1524, concede grande relevo a Vasco da Gama, nos assuntos relativos à expansão marítima, nomeando-o para vice-rei da Índia. A morte atinge o almirante-mor dos mares da Índia, ainda nesse ano, vindo a falecer a 24 de dezembro em Cochim.
No continente americano, D. João III, dividiu o Brasil em capitanias e, posteriormente, estabeleceu o governo central com Tomé de Sousa. Estava traçado o caminho para o desenvolvimento do Brasil com consequências determinantes nos reinados seguintes. Por outro lado, no Norte de África, devido aos elevados custos de defesa contra os ataques muçulmanos, vão sendo abandonadas as cidades fortificadas de Marrocos. Os xerifes do Norte de África apoderam-se de Marraquexe em 1524, cercam Safim em 1533, forçando o rei a abandonar Azamor, Alcácer Ceguer, Arzila, Santa Cruz do Cabo de Gué. No Índico, para além da crescente concorrência dos outros reinos europeus, surgia o perigo otomano, estimulando os chefes locais a lutarem contra os portugueses.
Ao longo do reinado vai abandonando o projeto imperial de seu pai, mantendo, no entanto, papel de destaque entre os reinos europeus, numa época de grandes transformações, em todos os áreas da sociedade. O aparecimento de duas potências – a Espanha de Carlos V e o Império Otomano, que tomou Buda e cercou Viena em 1529 –, colocam em questão a ordem estabelecida. Em termos económicos, os excessivos gastos com os socorros às praças do Norte de África, organização das armadas para a Índia, a defesa das costas do Brasil e África, a par do pagamento de dotes e a necessária aquisição de trigo nos maus anos agrícolas e obras públicas, vão exaurindo as finanças. A criação da Real Colégio das Artes e Humanidades de Coimbra, futura Universidade de Coimbra, e obras no Mosteiro de Santa Maria de Belém e no Convento de Tomar contribuíram para o desequilíbrio financeiro. A crescente concorrência espanhola, francesa e inglesa, a par do peso da vizinhança demasiado forte de Carlos V agudizam a situação.
Em termos pessoais, o rei D. João III viu morrer os nove filhos, assim como, os seus cinco irmãos. Experiências que devem ter contribuído para o seu posicionamento como pessoa de grande fé, ficando, tradicionalmente, conhecido como “o Piedoso”. Durante o seu reinado, instalaram-se no reino dos primeiros padres da Companhia de Jesus e permitiu a introdução da inquisição em Portugal, com a consequente fuga do reino de mercadores judeus e cristãos-novos.
Em 1524, a universidade está em Lisboa, só mais para o final do reinado passará para Coimbra. A conselho de Diogo de Gouveia, foram concedidas numerosas bolsas de estudo no estrangeiro enviando algumas dezenas bolseiros para França e Itália. Vive-se um período de renovação cultural com a afirmação do renascimento português. Na literatura destacam-se Garcia de Resende, Sá de Miranda, Bernardim Ribeiro, João de Barros, Damião de Góis; na matemática, Pedro Nunes; na botânica, Garcia da Orta; nas artes plásticas e arquitetura Francisco de Holanda, Miguel de Arruda, João de Castilho, João de Ruão, Nicolau de Chanterene, citando apenas alguns nomes, entre os muitos que se destacaram.
Portugal, em 1524, teria cerca de 1 200 000 habitantes. Em termos administrativos e judiciais, rege-se pelas Ordenações Manuelinas, 5 livros recentemente publicados que pretendem reunir todo o direito vigente no país, substituindo as anteriores Ordenações Afonsinas.
Em Belém, está construída a Torre de São Vicente e João de Castilho fecha a abóbada do transepto do Mosteiro de Santa Maria, vulgo, dos Jerónimos. Na cidade de Lisboa distingue-se o Terreiro do Paço com o Palácio da Ribeira, o Rossio com o Hospital Real de Todos-os-Santos, o Terreiro do Trigo, praças que marcam e começam a definir urbanisticamente o traçado da cidade a par de outras grandes obras iniciadas por D. Manuel. O grande terramoto de Lisboa, de 26 de janeiro de 1531, traz grandes alterações, mas as linhas gerais da cidade moderna encontram-se traçadas.
Em 1524, Vasco da Gama parte para o Oriente para tomar posse do cargo de vice-rei da Índia, vindo a falecer poucos meses depois. Em Lisboa, nasce Luís Vaz de Camões. Duas figuras maiores da história e cultura portuguesas, das quais se comemoram na atualidade os 500 anos.
Edite Martins Alberto
1. Biblioteca do Estado da Baviera, Biblioteca Digital de Munique - Johannes Stoffler / Jakob Pflaum, Almanach nova plurimis annis venturis inserventia 1499-1531, Ulm, 13 fevereiro 1499, fls.386-401 (BSB-Ink S-591-GW M44052). Disponível em: https://bildsuche.digitale-sammlungen.de/
2. Ana Isabel Buescu, D. João III (1502-1557), Lisboa, Círculo de Leitores e Centro de Estudos dos Povos e Culturas de Expressão Portuguesas, 2005, p. 118.
3. Frei António de Beja, Contra os juízos dos astrólogos (ed. revista e anotada por Joaquim de Carvalho), in Boletim da Biblioteca da Universidade de Coimbra, 1944, XVI, p. 205.
4. Pedro Campos Franke, “Os limites da Astrologia: Fr. António de Beja contra os prognósticos diluvianos de 1524”, in Anais da IV Jornada de Estudos do PPGHS/Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2009. Disponível em https://www.academia.edu/2384253.
5. Ana Isabel Buescu, op. cit., p. 118
6. Garcia de Resende, Crónica de D. João II e Miscelânea por Garcia de Resende, reprodução fac-similada da nova edição conforme a de 1798 (prefácio de Joaquim Veríssimo Serrão), Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1991, p. 371.
7. Eduardo Freire de Oliveira, Elementos para a História do Município de Lisboa, Lisboa, Typographia Universal, 1885, tomo I, 1ª parte, p. 470.
8. Sobre o Regimento da Saúde de D. João III datado de 1526 ver Edite Martins Alberto e Joana Balsa de Pinho, “´Evitar que o mal não padeça mais avante´ – O Regimento da Saúde de D. João III e a experiência italiana de saúde publica”, in Joaquim Pinheiro, Samuel Mateus e Mário Franco (coords.), Pestes e Epidemias: Estudos interdisciplinares em Humanidades, V. N. Famalicão, Edições Húmus / Universidade da Madeira, 2022, pp. 61-76.
9. Eduardo Freire de Oliveira, op. cit., 1906, tomo XV, p. 327.
BIBLIOGRAFIA SUCINTA:
BRANDÃO, Mário, Documentos de D. João III, Coimbra, Universidade de Coimbra, 1937, 4 vols.
BUESCU, Ana Isabel, D. João III (1502-1557), Lisboa, Círculo de Leitores e Centro de Estudos dos Povos e Culturas de Expressão Portuguesas, 2005.
CARNEIRO, Roberto e MATOS, Artur Teodoro de (ed.), D. João III e o império. Actas do Congresso Internacional comemorativo do seu nascimento. Lisboa, CHAM e CEPCEP. 2004
CRUZ, Maria Leonor Garcia da Cruz, “D. João III”, in João Medina (dir.), História de Portugal dos tempos Pré-históricos aos nossos dias, Alfragide, Ediclube, 1993, vol. V, pp. 259-264.
MENDONÇA, Manuela (coord.), História dos Reis de Portugal. Da fundação à perda da independência, Lisboa, Academia Portuguesa de História/ QUIDNOVI, 2010, vol. I