Rossio e São Domingos de Benfica
CONFRARIAS E IRMANDADES (2ª METADE DO SÉC. XV - XIX)
Desde o início da escravatura moderna em Portugal, que os negros de Lisboa procuraram formas de integração social e religiosa. As Irmandades e Confrarias serviram esse propósito, prestando assistência material e espiritual, incluindo o privilégio de resgate de cativos.
A graça que os suplicantes requerem, de algum modo impede a livre faculdade que os Senhores dos Escravos tem para os venderem, a quem lhes parecer [...]. se verifique somente em que os ditos Senhores dos Escravos os tratem com excessos de castigos corporais, que se façam ofensivos das regras da humanidade; ou quando por ódio e vingança os queiram vender para fora do domínio do Reino.
Parecer da Mesa do Desembargo do Paço a respeito da petição da Irmandade de São Benedito e N. S. da Guadalupe, ereta no Convento de São Francisco da cidade de Lisboa, 3 de março de 1779. IANTT, Maço 2109, doc. 23.
A primeira confraria de negros fundada em Lisboa foi a de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, na igreja do Mosteiro de São Domingos (na segunda metade do séc. XV).
O Alvará de criação da Confraria do Rosário dos Homens Pretos data de 14 de Junho de 1496. Trata-se do mais antigo documento conhecido de criação da Confraria de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos de Lisboa, com sede no Mosteiro de S. Domingos de Lisboa.
A confraria parece remontar à década de 1460. Era composta de "escravos cativos, mouriscos brancos, mulatos e índios, embora todos pudessem aspirar ao amparo mútuo, à alforria e sepultamento condigno".
No prólogo do "Compromisso de 1565" refere-se: "Homens pretos vindos das longes terra e da Etiopia ... vindo em conhecimento de N. Sra do Rosario e dos seus grandes milagres... forão os primeiros edificadores e principiantes e sostentadores da muy S. Capela e confraria que ora esta edificada e residente em o Mostº de S. Domingos"... a qual devoção floresceu no anno de mil quatro centos e sessenta.".
Entre os séculos XVII e XIX surgiram outras confrarias votivas a N. Sra. do Rosário, a N. Sra. das Mercês e a N. Sra. de Guadalupe, ou a santos com os quais se identificavam pela condição, origem ou pela cor da pele, como Santo Elesbão, Santa Ifigénia, S. Benedito ou Santo António de Noto.
Sendo as suplicantes umas pobres pretas, que não tinham outro ofício mais que venderem ao povo aquele sustento naquele lugar das escadas do Rossio […] Vossa Majestade lhe acudisse e valesse na violência que lhes faziam os ditos alcaides, para que as deixasse vender no lugar das ditas escadas (...) sabido e certo lugar para o povo ir comprar o que as suplicantes vendiam, de cujo lucro pagavam a seus senhores para seu sustento, de seus maridos e filhos e forravam ainda para suas irmandades e liberdades.
Consulta da Câmara de Lisboa, 19 de novembro de 1706. Arquivo Municipal de Lisboa, Arquivo Histórico
SUPERSTIÇÃO: AS BOLSAS DE MANDINGA (SÉC. XVII-XVIII)
[…] se lhe achou dentro algumas cabeças de cobra com dentes humanos nas bocas e hum papel escrito com letras e no mesmo pintada uma pintura medonha que a todos causou horror.
IANTT, Inquisição, 1731
A conversão ao catolicismo não anulou a espiritualidade e algumas práticas ancestrais africanas, permanecendo encobertas ou evoluindo para algum tipo de sincretismo com a religião oficial. O uso de amuletos era muito comum entre a população negra da cidade. A partir de finais do séc. XVII parece ter havido predileção pelas Bolsas de Mandiga, que terão resultado da troca de saberes em Lisboa, entre africanos de várias partes do império. Acreditavam que os escritos e ingredientes nelas contidos eram mágicos e o seu uso junto ao corpo, os protegiam das armas e das doenças.
Vista como um ato de feitiçaria, a prática foi muito perseguida pela Inquisição, então estabelecida no Rossio, no local onde hoje está o Teatro Nacional D. Maria II.
O QUOTIDIANO SETECENTISTA NUMA GRANDE PRAÇA DE LISBOA
Nos espaços de convivência e de trabalho – em palácios como os do Duque de Cadaval, do Marquês de Alegrete, de D. Luís de Almada; no Hospital Real e na Inquisição, em oficinas, estalagens e todo o tipo de habitações edificadas em torno da grande Praça do Rossio, centenas de pessoas trabalhavam e circulavam; e segundo o rol dos confessados de 1693, excluindo os menores e os não batizados, só na freguesia histórica de Santa Justa o número de escravos ascenderia a 256.