Em Abril de 1724 na rua do Jasmim da Mouraria, à saída da taberna “O Algarvio” um casal protagonizou uma discussão que descambou em luta. João Rodrigues “homem de pé” de um nobre das Portas de Santo Antão foi esfaqueado três vezes por Isabel Batista, vendedora de vinhos ao Espírito Santo. Por serem os ferimentos do agredido “tenues [e] se acha são e sem lesão alguma”, livrou-a por carta de perdão de ir parar à cadeia do Limoeiro (IANTT, cartórios notariais, 15º, Lv 481, fl. 79).
Este episódio serve para ilustrar o papel muito peculiar que as tabernas - locais onde se vendia “por miúdo vinho, azeite e alguma coisa de comer” (Raphael Bluteau) - desempenharam no quotidiano das populações urbanas do passado. Desde a época medieval que estes estabelecimentos se multiplicavam em Lisboa e providenciavam não só o lazer e o consumo de vinho, como também o sustento de parte considerável da população, servindo refeições simples e baratas. E, amiudadas vezes, eram também um importante palco da inquietude e das discórdias que grassavam nos bairros da cidade.
A trilogia pão, azeite e vinho foi durante séculos o alicerce da alimentação dos povos da Europa meridional. A popularização do consumo de vinho em Portugal provém não só das condições climáticas favoráveis à vasta produção agrícola da vinha, como também pela tradição e o simbolismo herdados das culturas da antiguidade clássica e judaico-cristã.
Desta união adveio uma grande influência na dieta alimentar, estando estes alimentos presentes em qualquer casa, não faltando o pão e o vinho à mesa dos lisboetas, incluindo na dieta das crianças. E como a bebida e a comida sempre desempenharam um importante papel nas celebrações festivas – nas religiosas e nas profanas – o vinho tanto servia para solenizar os santos, como para animar os convívios coletivos, permeados de folias e de danças populares.
Se as conjunturas climáticas e agrícolas assim o permitissem, os vinhos brancos, os tintos e os rosés abundavam nas tabernas e baiucas de ruas, becos e vielas da capital e do seu termo. E a sua localização na malha urbana não deixava muitas dúvidas pois atrás de uma porta enfeitada de ramos de loureiro, símbolo de Baco, de hera, pinheiro ou outras ramagens encontrava-se uma taberna. Um tipo de sinalização que persistiu por séculos e que já fora documentada por Gil Vicente no monólogo de Maria Parda (1522), que ao percorrer Lisboa em demanda de “ramos nas tavernas” se lamentava “e o vinho tão caro e ella não podia passar sem elle”. Nesta peça teatral, em périplo que começa na Sé e termina na Mouraria, Maria Parda atravessa os principais bairros da cidade medieval dando a conhecer o roteiro das tabernas e outras particularidades relacionadas com o consumo de álcool. Alguns anos mais tarde, o escudeiro de D. João III, João Brandão de Buarcos, corroboraria na obra “Grandeza e Abastança de Lisboa” (1552) essa abundância de tabernas, contando 300 “que vendiam vinho”.
Este cenário enquadrava-se numa Lisboa que no séc. XVI era já um empório comercial mundial e palco de inusitado crescimento demográfico. E as tabernas, acomodadas em lojas e sobrelojas um pouco por toda a cidade, além de servirem vinho providenciavam também a alimentação de importante parte da população urbana. Os abastecimentos e o comércio alimentar eram campos de acção prioritária para o bem-estar da população, que era composta de gentes de todo o país e do mundo conhecido. E os frequentadores mais habituais destes estabelecimentos eram precisamente o povo da cidade, residentes e viajantes, sobretudo homens e de variadas origens sociais e geográficas. Conforme expressa a consulta ao Senado de 1615, ao alertar para a conturbação que faziam na cidade os “quinhentos clérigos de fora e estrangeiros que só vêm para ganhar dinheiro da misericórdia e andarem a comer em tabernas”(AML-AH, Chancelaria Régia, Livro 1º de consultas, respostas e cartas de Filipe III, f. 50 e 50v). Observação que nos remete para as condições de subsistência na cidade, que podiam ser muito duras e agravadas pela habitação precária e pelo desamparo familiar, em circunstâncias comuns aos milhares de homens de trabalho, ribeirinhos, galegos e todos os outros que chegavam a Lisboa em busca de trabalho. Razões de sobra para proliferarem na cidade e haver “em cada rua e em cada casa […] uma loja que cozinha e vende peixe cada dia e em cada hora, ao ponto que devido ao mau cheiro do frito é aborrecido andar” (Fillipo Sassetti, italiano radicado em Lisboa em 1578).
Um negócio de tão grande importância estava sujeito, pelo menos desde o século XV, a várias regras e proibições (ordenações Afonsinas e posturas municipais) que controlavam o que se bebia e comia nestes locais. No século XVI o regimento da profissão acautelava a cobrança de impostos, a defesa do consumidor e a vigilância de costumes. Como já referido, as tabernas eram espaços de sociabilidade predominantemente masculina e onde a combinação de vinho, jogo e com frequência a prostituição, os potenciava como lugares de vício e libertinagem. O regimento de 1592 espelha-o, incluindo cláusulas de proibição sobre jogos de azar, servir vinho e comida para consumo local a escravos (proibição extensível no século XVIII aos criados de servir) instruindo para que os respetivos pedidos fossem rapidamente atendidos e “regressarem a casa de seus amos para não terem pretexto para se demorar”. As mulheres solteiras “que ganhem dinheiro por seus corpos” estavam também proibidas de permanecer em tabernas, uma regra constantemente quebrada e alvo de emenda em 1797 reafirmando a proibição de “ajuntamentos de mulheres”, entendidas como causadores de desordens.
Mas nem só da venda de vinho viviam os taberneiros, que também comercializavam bebidas destiladas como a aguardente, e a cerveja que chegou pela mão dos estrangeiros e já era popular em Portugal no século XVII, apesar das inúmeras restrições de que foi alvo. A taberna enquanto espaço de alimentação que servia refeições frugais e baratas, para consumo local e para levar para casa, tinha na base da sua elaboração as carnes cozidas e os peixes fritos, as cebolas assadas e as sopas, incluindo o substancial caldo de carne feito com pão fatiado e embebido num caldo de carnes temperado com ervas, alho e gorduras (BARROS, 2013). Indissociável destas funções, o importante papel comunitário no que toca ao lazer e à sociabilidade. O que está claramente estampado na documentação que a partir do século XVII nos “conduz” ao interior destes estabelecimentos onde, provavelmente, já se jogava ao chinquilho, à laranjinha e outros jogos. Entre meia canada de vinho e uma partida de cartas, a vizinhança, viajantes, os companheiros de trabalho reuniam-se, faziam contratos, acobertavam-se relações intimas socialmente reprováveis, comprava-se a ceia para comer em casa.
Motivos de sobra para que as tabernas marcassem as ruas onde se fixavam, e nem sempre pelas melhores razões, pois onde o vinho era rei e onde tantos e tão diferentes se reuniam, num instante o alvoroço levava a distúrbios e por vezes ao crime, conforme o relatado inicial. Entre as medidas mais precoces no combate à clandestinidade e desincentivo aos furtos e desacatos destaca-se a determinação do rei D. Sebastião em colocar as tabernas em ruas próprias, visando efetuar-se uma vigilância mais eficaz (Leys e Provisões, 1570, p. 116). Chegou a decretar-se o arruamento em ruas direitas (1591). Mas estas medidas revelaram-se ineficazes, continuando a surgir tabernas por toda a cidade. De facto, os homicídios e as agressões eram frequentes e estavam muito associados a estes espaços, o que tendia a agravar-se consoante o horário e a localização.
Oficialmente, o horário de encerramento seria após “ter corrido o sino” (das 20h às 21h no inverno e das 21h às 22h no verão) e deviam permanecer fechadas “até a noite clarear”. A fiscalização competia aos quadrilheiros que também deviam manter a ordem procurando por ladrões, homens suspeitos e vadios nas tabernas e estalagens de cada bairro. Um tipo de vigilância que já vinha do séc. XIV (1372) competindo então ao alcaide-mor a ronda noturna entre o “toque do sino de recolher e a missa de S. Vicente”. Procuravam por mouros e judeus que estavam proibidos de entrar em tabernas e tinham obrigatoriedade de permanecer na mouraria e nas judiarias de Lisboa.
A consumação de negócios ilícitos como o contrabando e a fuga aos impostos do real d’água e da alfândega era comum, sobretudo nas tabernas da borda do rio, mais frequentadas por marinheiros de todo o mundo, trabalhadores do porto e toda a espécie de ribeirinhos. De tal modo lesavam os cofres públicos que foi ordenada a demolição de todas as tabernas ribeirinhas, entre as travessas do Corpo Santo, Remolares, Pampulha, e outros largos da parte do mar até Alcântara (1636), desde que tivessem janelas e portas abertas para o lado do mar.
Após o terramoto de 1755, a deslocação das populações e a crescente ocupação dos terrenos das praias, que se prolongou pelo século XIX, foi acompanhada pela instalação em toda a frente ribeirinha de tendas e tabernas, o que causava embaraços à gestão da cidade. Para ocidente, nas praias de S. Paulo e de Santos, locais muito usados para a atracagem dos navios que “davam monte” para e manutenção e limpeza voltou a ser necessária a sua demolição sistemática, apenas se poupando as que estavam localizadas entre Alcântara e Pedrouços, outro espaço de importante implantação populacional após 1755.
No lado oriental da Ribeira os problemas mais prementes relacionavam-se com o Malcozinhado, cujas tendas e tabernas se conservavam em atividade durante a noite e necessitavam de iluminação permanente e de fogo aceso para a preparação alimentar. O grande perigo de incêndios motivou aqui uma vasta operação de demolição destes estabelecimentos entre o chafariz da Praia e a muralha fernandina.
Após a reconstrução outros negócios similares começaram a proliferar pela Baixa, tendo já dado alguns sinais antes do terramoto, conforme revelou o autor da obra “Ronda de Lisboa” quando uma das suas personagens em passeio pela Baixa interroga ”Ó amigo, que espécie de tabuletas são estas, que só nesta pequena rua tenho já contado sete, as quais nem são de boticas, tavernas, nem casas de pasto para pessoas graves, e tudo parecem? Estas, […] disse eu, são casas a quem os modernos chamam de bebidas; […] Repara bem […] e as verás mais assistidas que os templos de Deus”.
Como conclusão, esta resenha de apontamentos objetiva
contextualizar o conjunto de dados biográficos e toponímos de tabernas e taberneiros de Lisboa recolhidos em várias fontes documentais dos séculos XVI ao XVIII no âmbito do projeto das antigas profissões, artes e tipos sociais de Lisboa Antiga. Permite aferir sobre a importância que estes estabelecimentos desempenharam, a par das hospedarias, estalagens e casas de bebidas, no que toca ao lazer e fornecimento de preparados alimentares à população de Lisboa. Por outro lado, percecionar o surgimento e a especialização de outros estabelecimentos, verificado a partir do séc. XVIII que ao serviço da população partilharam os mesmos objetivos – o convívio/entretenimento e a alimentação, mas já com clara diferenciação do público-alvo e dos produtos comercializados, começando a entrar nos hábitos dos lisboetas o consumo de chocolate e de café, os sorvetes e os licores – falamos dos botequins e dos cafés.
Delminda Rijo (GEO - Núcleo de Demografia Histórica)
IMAGENS:
Imagem 1 – Interior de taberna. Teniers II, David. C. 1640. Museu de Arte de Cleveland.
O interior de uma taberna não diferiria muito das que ainda sobrevivem. Fontes documentais do século XVIII descrevem o parco mobiliário de madeira constituido por bancos, mesas e balcão, não faltando os barris, tonéis, selhas e talhas de água, para além dos copos, por vezes em estanho e folha de flandres, das garrafas e garrafões e utensílios para a preparação da comida. Com algum grau de sofisticação podiam encontrar-se algumas tabernas que dispunham de toalhas e guardanapos.
Imagem 2 – Interior de Taberna. Cunha, Ferreira da, Anterior a 1930. AML - Arquivo Fotográfico.
Os preços eram colocados na abertura das pipas e mantinham-se invariáveis. De modo a evitar as misturas, só permaneciam dois tonéis abertos, um de tinto e outro de branco. Os vinhos eram servidos com recurso aos imprescindíveis funil e alcadafe nas quantidades desejadas, que variavam entre a canada, quartilho, real e as meias medidas respetivas.
Imagem 3 - Procissão do Corpo de Deus, o pagem na sua montada. Benoliel, Joshua. 1910. Cota: JBN000800. AML - Arquivo Fotográfico.
No campo da espiritualidade, os taberneiros participavam ao lado dos merceeiros e dos boticários na solene e aparatosa procissão do Corpo de Deus cujo desfile de dignidades e corporações de ofícios espelhavam com os seus estandartes e alegorias a estrutura social e laboral da capital. Animavam a procissão com danças e um monstro gigantesco.
Imagem 4 - Rua de S. Miguel em Alfama. Gameiro, Roque. 1910-1920. Lisboa Velha, estampa 89. Museu de Lisboa.
Atrás de uma porta enfeitada de ramos de loureiro, de hera, pinheiro ou outras ramagens encontrava-se uma taberna.
BIBLIOGRAFIA:
AML-AH, Chancelaria Régia, Livro 6º de Consultas e Decretos de D. João V, do Senado Oriental, f. 20.
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CÂNCIO, Francisco, Lisboa: Tempos Idos, vol. II, 1958, p. 313.
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LOUSADA, Maria Alexandre, “Alimentação popular urbana no início do século XIX: tabernas e casas de pasto lisboetas”, In: Desenvolvimento económico e mudança social. Portugal nos últimos dois séculos. Homenagem a Miriam Halpern Pereira, Lisboa: ICS. 2009, pp. 227-248.
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