Profissões, Artes, Cargos e Ofícios de Lisboa na Época Moderna (Séculos XV-XIX). O Tanoeiro

Pormenor de Livro de Horas de D. Manuel I. Mês de Setembro. Atribuído a António de Holanda. [1517-1551]. Museu Nacional de Arte Antiga.
Departure from Lisbon for Brazil the East Indies and America illustration from Americae Tertia Pars 1592. Theodore de Bry.
Tanoeiro. Códice 43. Século XIV. Ordem de Cister, Mosteiro de Lorvão.

A tanoaria - fabricação de recipientes de madeira sob variadas formas, das quais o barril se converteu no modelo mais popular - resulta da justaposição de tábuas formatadas, aninhadas umas nas outras e mantidas unidas pela pressão de arcos de metal. É uma arte milenar conhecida na Europa Ocidental, pelo menos desde a Antiguidade clássica, e representada em narrativas das mitologias grega e romana. Os tonéis de madeira foram descritos pelo historiador Plínio, o Velho (séc. I d. C.) na sua Historia Natural como sendo costume dos gauleses da região alpina usá-los para armazenamento e transporte de alimentos.

A sua resistência, a capacidade de preservação dos alimentos e a facilidade de transporte, incluindo o manejo no acesso aos barcos e a fácil arrumação nos porões, foram as características que a partir do séc. II d.C. levaram ao progressivo abandono da ânfora, preferindo-se o uso de tonéis e de barris de madeira para acondicionamento e circulação terrestre e marítima de vinho, azeite, água e outros bens alimentares.

Usados em Portugal pelo menos desde a Idade Média, o fabrico de tonéis ganhou popularidade a partir do séc. XIII, sobretudo no litoral atlântico. Lisboa, cidade portuária com intensa atividade ribeirinha, porto de chegada, de consumo e de partida de mercadorias exportadas para a Europa do Norte - azeite, vinho, vinagre e mel - exigia grandes quantidades de recipientes contentores. E o florescimento do ofício mecânico de tanoeiro em Lisboa está intimamente ligado a esta exigência.
A procura de pipas, barris e tonéis elevou a arte da tanoaria a um lugar de relevo no panorama socioprofissional da capital. E cedo os seus oficiais se organizaram e arregimentaram sob a «postura dos tanoeiros de Lisboa e das penas que nela há» (1316), um esboço do regimento escrito de 1550 e legislação posterior, que estabelecia as normas laborais, a uniformização de medidas e a obrigatoriedade de certificação com a marcação a ferro quente dos tonéis, pipas e quartos de meação (VIANA, 2022, p.166). Tomaram também assento na Casa dos 24, instituída em 1384, integrando o conjunto dos representes dos principais mesteres da capital.
O mesmo cunho corporativo esteve na origem da confraria de Santa Ana, de proteção divina ao ofício, respeitando o "Compromisso da Confraria e Irmandade da Bem-aventurada Santa Ana”, e que esteve estabelecida na Igreja de São Julião, pelo menos até 1730. A esta associava-se o hospital dos tanoeiros (c. 1335), que dispunha de duas enfermarias e 25 camas para incuráveis, e que foi transferido, por alvará régio de D. Manuel I (1521), para a rua dos Escudeiros. Ainda no âmbito da devoção, a participação na procissão do Corpo de Deus, um momento alto do calendário litúrgico nacional, reafirma a sua importância no quadro dos ofícios mecânicos. Os tanoeiros eram a terceira corporação por ordem de importância e concorriam com rei e dança de doze vozes, vindo a ser os responsáveis pelo panejamento com toldos, da rua Nova (COUTO, 1971).

A aprendizagem do ofício estava concluída quando o oficial estava capacitado a executar com perfeição um tonel, uma pipa, um quarto e um barril de 4 almudes. A uniformização dos pesos e das medidas em Portugal no reinado de D. Manuel I tomou como referência o padrão dos de Lisboa desde o século XIV. O tonel, que se tornou na principal unidade adotada no transporte marítimo da Europa atlântica, tinha a capacidade legal de 50 almudes, e cada almude correspondia a 16.8 litros, isto é, cada tonel tinha capacidade para 840 litros. Quanto às madeiras, as mais utilizadas na fabricação dos objetos eram o castanheiro e o carvalho diversificando-se mais tarde com outras matérias-primas importadas da Europa e dos territórios ultramarinos, com destaque do vinhático do Brasil.

Os tanoeiros precisavam de amplos espaços para trabalhar e de proximidade à Ribeira, condições que explicam a sua permanência à borda de água, durante séculos. Data de 1318 o pedido de um arruamento profissional, numa fase ainda inicial da organização urbana dos mesteirais de Lisboa. Das ruas da Ferraria e do Saco, junto da rua dos Mercadores e da Casa de Ceuta (1521), passam para o exterior da cerca, já com a designação de praça dos Tanoeiros, entre a rua da Porta da Oura e Cata-que-Farás. Segundo uma petição dos juízes do ofício, estiveram arruados mais de 500 anos, aproveitando a abundância de poços de água, tão necessários ao ofício, e a proximidade ribeirinha, para o embarque e desembarque das naus.

O crescimento urbano e a evolução social determinaram os ajustamentos à localização da tanoaria. A ocupação do espaço público com alpendres, ou a exposição de madeiras a secar, podiam afetar o quotidiano da cidade em questões tão diversas como a fluidez do trânsito de carruagens, por exemplo. A localização foi, de facto, uma questão polémica e transversal, que culminou com a demolição do arruamento dos tanoeiros em meados do século XVIII para dar lugar às obras reais e construção do teatro da ópera.

A era da expansão ultramarina elevou a profissão de tanoeiro a importante peça na engrenagem da epopeia marítima. A obra de tanoaria transformou-se no meio de cálculo da arqueação dos navios de grande porte “[…] as maiores naus da Índia, pelos finais do século XVI e princípio do século XVII, deveriam andar pelos 17-18 rumos de quilha, correspondendo a c. de 600 tonéis de arqueação […] uma nau ou galeão dizia-se que eram de 500 tonéis por poderem efetivamente transportar 500 tonéis no espaço considerado, que era todo aquele que estava abaixo do convés. […] Para o cálculo final da arqueação considerava-se que os espaços vazios eram preenchidos com pipas, correspondendo cada duas a um tonel” [DOMINGUES, 2002].

A preparação de uma armada envolvia grandes contingentes de oficiais mecânicos, como carpinteiros, calafates e também os tanoeiros. Estes integravam as armadas para executar, sempre que necessário, pipas, barricas e barris, e eram também os responsáveis pelos recipientes usados para a conservação das mercadorias e dos víveres levados a bordo (água, vinho, azeite, biscoito, etc.). As exigências da época nesta matéria eram tão altas que o número de tanoeiros era insuficiente. De tal modo que segundo João Brandão de Buarcos, em 1552, uma nau tanoeira do Porto vinha todos os anos a Lisboa para comercializar entre três a quatro mil pipas e tonéis «abatidas, acompanhadas por tanoeiros que as armam nesta cidade” (BRANDÃO, 1916, p. 43).

A par das exigências das navegações ultramarinas, a atividade tanoeira acompanhava o ciclo económico de algumas das principais produções nacionais, como é o caso do vinho e do azeite (VIANA, 2022, p. 155). Em meados do século XVII há um franco desenvolvimento da cultura e comércio de vinho, a que se associa a intensificação da produção de “louça” de tanoaria.

Se até então os maiores reveses da classe e a conflituosidade estavam relacionados com os arruamentos e a aquisição de madeira (1597), em finais do século XVII, como reação à tentativa de monopólio de produção de barris (1693), cuja inflação dos preços prejudicou as exportações de azeite e de vinho, os comerciantes, sobretudo os ingleses, cujo negócio exigia grandes quantidades de barris, entram em cena. Procurando defender os seus interesses, começam a assalariar mestres e oficiais que passam a trabalhar diretamente nos armazéns de vinhos, fora do controlo da corporação  (LACERDA, 1998, p. 383).

Em curto espaço de tempo a produção tanoeira deixou de se limitar ao círculo urbano ribeirinho, proliferando os fabricantes de “louça” de tanoaria na margem sul e no termo de Lisboa. Segundo os tanoeiros de Lisboa, essa atividade particular prejudicava não só a fazenda real, como o bem comum, pois só a obra dos mestres de Lisboa era fiscalizada devido às “lojas abertas e onde são vistas as obras que eles fazem nas correições dos almotacés e dos juízes do oficio” (AML-AH. Chancelaria da Cidade, Livro 1º de posturas, doc. 50, f. 75 e 75v).

As ordens e os despachos régios e do senado (1707 e 1720) proibiam as tanoarias particulares, incluindo as do termo de Lisboa, devido aos “descaminhos que se seguem aos direitos da fazenda real procedem do embarque que fazem por alto de toda a louça que se fabrica nas ditas oficinas”. E em 1739 foram condenados oficiais tanoeiros que trabalhavam nos armazéns dos contratadores dos vinhos, cujo prejuízo levou a um conflito com a irmandade de Nossa Senhora da Assunção, dos comerciantes de vinho.

O terramoto de 1755, que afetou todos os setores da sociedade e do quotidiano de Lisboa, precipitou na produção de tanoaria o que já se anunciava antes, o declínio do controlo sob a égide corporativa. Multiplicaram-se as oficinas em vários pontos da cidade e do termo, algumas permaneceram no antigo espaço da Ribeira, em barracas, nos terrenos da marinha à Boavista, partilhando o espaço com outras atividades artesanais como a de entalhadores e as estâncias de madeira. Dispersaram-se pelo espaço urbano e sobretudo em terras do Termo, como Marvila, local de produção de vinho que aproveitando a localização ribeirinha e na confluência de áreas de produção vinícola, dispunha de armazéns de vinho a que se associavam oficinas de tanoaria.

Quando em 1834, a 7 de maio, foi decretada a extinção das corporações de ofícios que estavam ordenados em bandeiras, há muito que a corporação de tanoeiros perdera o poder associativo, e já havia notícia da produção de tanoaria em unidades fabris.

Bibliografia
Arquivo Municipal de Lisboa – Arquivo Histórico. Chancelaria da Cidade, Livro 1º de posturas, doc. 50, f. 75 e 75v
https://arquivomunicipal3.cm-lisboa.pt/X-arqWEB/
COUTO, Luís de Sousa. (1971). Origem das procissões da cidade do Porto. Porto. Câmara Municipal do Porto.
DOMINGUES, Francisco Contente. (2002). O Tonel. Instituto Camões.
http://cvc.instituto-camoes.pt/navegaport/c18.html
LACERDA, Silvestre. (1997). A Tanoaria, a arte e a técnica. Projeto Estruturas sócio-económicas e industrialização no Norte de Portugal (sécs. XIX-XX). JNICT.  https://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/5299.pdf
VIANA, Mário (2022). "A regulamentação da tanoaria em Portugal (séculos XIV-XVI)",  in Regulamentação dos mesteres em Portugal nos finais da Idade Média - Vol. I, Universidade dos Açores. https://repositorium.sdum.uminho.pt/bitstream/1822/86594/1/medcraft_vol1_ebook.pdf

 

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