Antigas Profissões, Artes e Ofícios de Lisboa (séculos XVI-XIX): O Quadrilheiro

Vigilante Nocturno. Arquivos da Polícia de Gloucestershire IRN, UK/Inglaterra, 1585
Pormenor do quadro Chafariz d’El Rei. Anónimo, pintura flamenga, óleo s/ madeira, séc. XVI. Col. Berardo, MNAA, Lisboa
A Ronda Nocturna. Rembrandt, 1642, óleo sobre tela. Rijksmuseum, Amesterdão, Países Baixos

Oficial inferior de justiça, integrado numa estrutura de segurança civil que remonta a tempos medievos, quando homens portadores de vara e armados de lança eram recrutados involuntariamente para a função de policiamento e zelo da segurança dos habitantes, sem qualquer remuneração. Vulgarmente e mais tarde apelidados pela população de “nocturnos”, “sisudos” ou “morcegos”, não gozavam de respeito ou qualquer prestígio social. Fundamentalmente urbanos, assumiam uma função dura e penosa, chegavam a ser violentamente agredidos nas missões, sendo comum tentarem fugir à sua nomeação.

A inquietação com as questões de segurança e policiamento dos lugares e povoações, sempre foi uma realidade que integrava as preocupações do governo do reino. Várias foram as tentativas de resolução deste problema, com formas mais ou menos estruturadas de policiamento nas vilas e cidades.

O policiamento diurno e nocturno da cidade competia ao Alcaide Pequeno (oficiais régios nomeados pelo Alcaide-Mor) que, acompanhado pelo escrivão e pelo recebedor de direitos, encabeçava um determinado número de indivíduos jurados, os “homens da alcaidaria”. Armados pelo arsenal régio e dotados de equipamento para garantir a sua integridade física, dividiam-se em grupos de patrulhas, diurnas e rondas nocturnas. Apreendiam e controlavam a posse de armas, vigiavam o jogo clandestino, cobravam coimas, e prendiam os malfeitores. Elevados riscos, acompanhados de uma remuneração pouco atractiva, eram factores que contribuíam para a escolha de outras opções, que lhes trouxesse maior provento (MARTINS, 2006:90-92). A partir de meados do séc. XIV, as medidas de segurança instituídas pelos alcaides não pareciam ser eficientes na resolução dos problemas da segurança pública, especialmente nos centros urbanos, onde grassava a criminalidade e a instabilidade social. A intervenção das autoridades locais - Corregedor e Concelho - levou à criação de “outras formas alternativas e originais de polícia, como os Quadrilheiros, ou nomeando Meirinhos com uma força armada própria alicerçados numa rede de informadores espalhados pelas freguesias da cidade” (MARTINS, 2006:99).
 
Eduardo Noronha descreve os Quadrilheiros da seguinte forma: “os moradores mais honrados de cada bairro, que trabalhem pelos seus mesteres (…) vinte freguezes de cada paróchia devem acudir quando bradarem por eles (…) levavam para sua defesa lanças de dezoito palmos, chuços ou alabardas” (NORONHA, 1923:44).

Desconhece-se a época certa em que apareceram os primeiros Quadrilheiros, mas a sua organização remete-nos para o séc. XIV, sendo confirmada por D. Fernando, num diploma que os menciona pela primeira vez, em 12 de Setembro de 1383. O seu teor não sugere a sua fundação, reflectindo uma existência seguramente anterior, de iniciativa e proposta concelhia (MARTINS, 2006:94). Este diploma reforça a importância da função que o quadrilheiro tinha, em acudir de imediato aos tumultos, com as armas que deveria manter à sua porta para rápida diligência. Posteriormente, ao longo dos tempos, encontram-se referências a seu respeito que, apesar de incluírem alguns privilégios, não foram suficientemente atractivas para que a função passasse de nomeação compulsiva a escolha voluntária.

Subordinados às câmaras os Quadrilheiros eram civis, escolhidos entre os mais idóneos da comunidade, gente de todos os ofícios, como tanoeiros, alfaiates, sapateiros, recrutados à vista do rol de moradores, por ciclos de 3 anos, contra sua vontade e sem remuneração. Eram ordenados pelos juízes e vereadores do município que, reunidos em câmara, nomeavam ainda, de entre todos os moradores, 20 pessoas aptas, que fossem mais capazes, da mesma “quadrilha” ou bairro, e sempre disponíveis para prestar-lhes auxílio de dia ou de noite nas suas diligências. Ajuramentados para servir a causa da ordem e sossego público, podiam citar e fazer fé, apresentando a denúncia ao respectivo Corregedor ou Juiz do crime. Prestavam serviço de intervenção sempre que surgia um incidente, mas também de prevenção mantendo-se atentos e vigilantes a todas as actividades irregulares na sua “quadrilha” ou bairro. Cada elemento da “quadrilha” deveria ter à porta de casa, para melhor acudir ao primeiro alvoroço: uma lança de 18 palmos, utilizada para manter a ordem nas multidões, uma de 9 palmos usada nas detenções pessoais, ou uma chuça ou alabarda e não sendo portadores da mesma, chegavam a pagar uma multa para o meirinho ou alcaide, ou para o quadrilheiro que o acusasse. Não dispunham de qualquer equipamento de protecção corporal, e quando em perseguição dos malfeitores, deveriam fazer-se ouvir gritando de quadrilha em quadrilha por auxílio, até conseguirem prender os fugitivos e levá-los ao juiz. Nenhuma quadrilha se poderia ausentar ou mudar de rua sem o fazer saber ao julgador do seu bairro, para se proceder no imediato à sua substituição.

A sociedade do Antigo Regime era essencialmente controlada, não sendo centralmente vigiada, como se caracterizaria a partir de finais do séc. XVIII, por não existirem dispositivos centrais com capacidade para realizar essa função. Os diversos pólos de poder presentes nas comunidades, com os seus interesses corporativos, emanavam diferentes regras não sujeitas propriamente a um comando central. A ordem social assentava numa matriz religioso-jurídica, e a sua manutenção era assegurada por quem estava presente, as instituições e colectividades locais e suas elites, e as famílias. Para além dos párocos e dos juízes locais, a comunidade e os vizinhos interferiam na regulação das relações domésticas e na fiscalização dos comportamentos morais da população. Permaneceram durante séculos, práticas institucionalizadas que estimulavam a denúncia. Praticavam-se visitações e “devassas” com regularidade pelas paróquias, e a palavra “devassar” vai adquirir mais tarde um significado fortemente ligado à passagem da esfera da privacidade para a esfera pública. Aquele universo social, pautava-se por uma escassa distinção entre público e privado, e entre outras coisas, por elevados níveis de violência ao nível do quotidiano.

A falta de recursos humanos para assegurar as funções de segurança e policiamento, foi sempre um problema transversal ao longo dos tempos. Aos Quadrilheiros, eram-lhes concedidos alguns privilégios pelos sucessivos reis, para desincentivar as escusas da função.

D. Afonso V (10 de Julho de 1460) estatuiu alguns privilégios para os Quadrilheiros ordenados e legalmente inscritos no livro da câmara da cidade de Lisboa: isentou-os das obras públicas e dispensou-os de serem “acontiados” em arneses e em bestas, enquanto cumprissem a função de quadrilheiro, privilégios que com o tempo perderam o seu valor, e um século depois a cidade encontrava-se desprovida de Quadrilheiros. D. Sebastião em 1570, toma diversas providências perante o estado de desordem e impunidade que vigorava no território, manda que se divida a cidade e o seu termo em bairros e que se fizessem Quadrilheiros em cada bairro, à semelhança do que se determinava para as restantes cidades e lugares do reino. Atribui a cada quadrilheiro uma vara verde, com as quinas reais, não sendo propriamente uma arma, pretendia legitimar a autoridade conferida pelo rei. A Casa dos 24 e o Senado pedem para que sejam dispensados das levas das fronteiras, alardos e mais obrigações da milícia e regimento das ordenanças e o soberano isenta-os não só do serviço militar como do pagamento de impostos. Mas apesar dos esforços para manter os Quadrilheiros, a cidade continuava sem estes elementos, para manter a ordem e a paz pública. Com a perda da independência (1580) deixamos de ter notícias dos Quadrilheiros até 1603 quando, já sob o domínio espanhol, o âmbito dos Quadrilheiros foi ampliado por determinação do rei Filipe II de Portugal, que sentindo a necessidade de reformar e valorizar a força de segurança na cidade de Lisboa, criou o Corpo de Quadrilheiros patente num extenso alvará de 12 de Março. Uma espécie de polícia urbana, de que deviam fazer parte, os moradores mais honrados, estabelecidos com os seus ofícios e que deveriam por isso, ser recenseados nas diferentes paróquias. Para a nomeação, as várias freguesias da cidade foram repartidas por juízes, um juiz para cada freguesia. Este magistrado deveria fazer-se acompanhar por um escrivão e, em cada rua, deveriam escolher um homem que fosse respeitoso e de presença habitual. Reafirmou a entrega da vara verde com as armas reais,  e a ajuda de 20 vizinhos, como nas disposições anteriores, para prender os malfeitores e acudir aos desacatos. Poderiam entrar nas casas dos duques, marqueses, condes, arcebispos, bispos, prelados, senhores de terras, fidalgos ou coutos em perseguição de algum homiziado, indicado pelos juízes, até o delinquente ser preso. O soberano autorizou que guardassem para si e para os de sua quadrilha as armas apreendidas, e quem resistisse às suas ordens, sujeitava-se a castigos como se de ordens de alcaide se tratassem. Os Quadrilheiros deveriam dar semanalmente informação ao Corregedor, ou Juiz do seu bairro, acerca do estado da respectiva quadrilha, sendo diligentes na descoberta de criminosos e tomar conhecimento do aparecimento de estrangeiros e pessoas “vadias” ou de “má fama”, homens amancebados, alcoviteiras, feiticeiras, pedintes, pessoas que testemunhassem falso por dinheiro, “mulheres que para fazer mal de si, recolhessem homens por dinheiro”, ou com fama de desviar outras mulheres para “beberagens” ou casas de alcoice. A vigilância deveria ser constante em locais de grande convivialidade, como estalagens e tabernas, casas de tavolagem (jogo) e esconderijos de furtos e de ladrões. O não cumprimento destes preceitos, e provando-se que favoreciam semelhantes pessoas ou que as consentiam andar na quadrilha, sujeitavam o quadrilheiro a várias penas consoante a infracção, desde pecuniárias a degredo. Se uma pessoa vadia ou estrangeira cometesse furto ou dano, a responsabilização recaia sobre o quadrilheiro e elementos da sua quadrilha que o consentiram, e eram obrigados a pagar o dano às partes. E o quadrilheiro que estando presente não acudisse aos desacatos, pagava uma multa de 500 réis, enquanto os elementos da quadrilha pagavam 200 réis.

Durante o domínio filipino permaneceu uma atmosfera de nomeação compulsiva de Quadrilheiros, que perdurou durante décadas. Após a Restauração, também D. João IV deu continuidade às questões de segurança da capital, consultando o Desembargo do Paço acerca da conservação dos Quadrilheiros. O parecer da Câmara após consulta à Casa dos Vinte e Quatro mesteres, sugeria a remuneração do cargo, dispensa militar, isenção de pena vil por crimes cometidos, o acesso a cargos nobres da república após o desempenho da função e a limitação etária adequada às funções exigidas. Obteve larga concordância do soberano, à excepção da condenação com pena vil em caso de roubo, sem pronunciamento de remuneração. O rei D. Pedro II deu continuidade à estratégia de manutenção do corpo de Quadrilheiros, com recomendação de boa prestação e dedicação, mesmo não havendo lugar a remuneração (11 de Fevereiro de 1696): consentiu a admissão aos ofícios que o Senado da Câmara provia aos homens do povo, isentando-os dos encargos das bandeiras, dos alardos e de exercícios militares e ainda conservação das armas apreendidas. Mas os incentivos eram insuficientes e os quadrilheiros, quando eram eleitos evocavam frequentemente escusa ao cargo, justificando com razões várias, como a falta de condições físicas, ou até a possibilidade de desvalorização social, no seu regresso aos ofícios anteriores. Esta incipiente estrutura de segurança civil teve várias oscilações ao longo do tempo e escassa adesão voluntária dos habitantes da quadrilha ou “bairro”, não sendo capaz de se adaptar para dar resposta à criminalidade no Período Moderno, o que levou ao enfraquecimento e consequente extinção.

Em Setecentos, os Quadrilheiros ainda são parte da solução encontrada para repor a ordem e reduzir a criminalidade, mas este modelo de organização policial, que continuou compulsório e sem remuneração, mostrou-se ineficaz, sobretudo nos centros urbanos, não eram temidos pelos malfeitores e eram pouco estimados pelo ministro. Para essa ineficácia contribuiu certamente uma ausência de estrutura orgânica de comando, que fosse capaz de promover a articulação entre os agentes ao serviço do concelho - os Quadrilheiros, como já referido, muito limitados pelos recursos rudimentares, e os outros agentes - os Alcaides Menores e os seus homens – os representantes do poder real. Face à ausência de concertação entre os mecanismos administrativos e judiciais e um modelo policial ineficaz, o terramoto de 1755 agravou as condições de segurança pública e ordem social. A administração pombalina determinou que cada família, em cada casa e sem excepção, deveria contribuir mensalmente com um homem armado, nas rondas nocturnas na cidade, uma solução que perdurou por vários anos, mas que, de igual modo não produziu efeitos. O aumento de insegurança e criminalidade, levou a coroa a tomar medidas. O termo “Polícia”, que nesta época traduzia as providências do rei, teve como objectivo a prestação de auxílio, o conferir bem-estar à população e felicidade do Estado, segundo a linha “iluminista” de outras cortes estrangeiras. A gestão quotidiana da cidade, ganhava eficácia com o conhecimento integral da população e do território, o que só se tornaria possível através da criação de mecanismos de controlo social. A centralização do poder régio, que entre outros parâmetros incide na disciplina, esvaziou os poderes políticos periféricos. É neste contexto, por incentivo de Sebastião José de Carvalho e Melo, futuro Marquês de Pombal, que é fundada a Intendência da Polícia da Corte e do Reino (25 de Junho de 1760). Uma instituição que visava a centralização das leis existentes, com ilimitada jurisdição em matéria de Polícia e uma nova estratégia de prevenção da criminalidade, merecendo destaque a prerrogativa legal do diploma que concedia aos particulares a possibilidade de deter viajantes suspeitos. O Intendente concentrava mais poderes que o próprio governo, e o seu objectivo era a promoção da riqueza, da boa ordem e paz pública com o objectivo subjacente de educar os povos. Entendia-se que o estímulo à educação e bem-estar, seria promotor da “razão” e da “riqueza” criando condições para todos os membros da sociedade.

Pina Manique, homem de confiança do Marquês de Pombal, que assumiu o cargo de Intendente Geral em 1780, consolidou a acção policial, fundamentada no controlo absoluto de todas as áreas, desde a religião, os costumes, saúde, artes, comércio e abastecimento. Ao instituir a Real Casa Pia de Lisboa, trouxe para o campo da “polícia” uma nova e forte noção: a correcção e a emenda, das crianças desvalidas, dos mendigos, das pessoas vadias e delinquentes, com a premissa de sustentar o bem-estar dos povos. Em Portugal a utilização do conceito de “polícia” antes da segunda metade do século XVIII estava quase exclusivamente relacionada com a manutenção da ordem e do bem comum, e vai adquirir em meados do mesmo século um significado diferente, alicerçado numa “cultura de disciplinas” ou “Estado de Polícia”, como estratégia de prevenção da criminalidade. Este espírito do despotismo pombalino, mostrou-se focado mormente no controlo político, com mecanismos de repressão, movimentos de vigilância de estrangeiros na corte, redes de espionagem, relegando para segundo plano a segurança pública. Nos alvores do séc. XIX surge um novo modelo de segurança - que dura mais de três décadas - a Guarda Real da Polícia (10 de Dezembro de 1801), um corpo permanente, militarizado a pé e a cavalo, ditando a extinção dos Quadrilheiros.

O liberalismo extingue o cargo de Intendente Geral da Polícia (8 de Novembro de 1833) mas a memória de Pina Manique permanece na toponímia de Lisboa, no “Largo do Intendente”, local onde residiu, na actual freguesia de Arroios.
 
Bibliografia:

- BLUTEAU, Raphael, (1728) Vocabulário Português e Latino(…): Coimbra: Colégio das Artes, vol.VII (p.7-8);
- MARTINS, Miguel Gomes (2006) A Alcaidaria e os Alcaides de Lisboa durante a Idade Média (1147.1433), Coord. Inês M. Viegas e Miguel G. Martins, CML/DMC/DBA/DGA;
- MATTOSO, José, (1993) História de Portugal, O Antigo Regime, 4º volume, Coord, A.M. Hespanha, Circulo de Leitores;
- MATTOSO, José, (2011) História da Vida Privada em Portugal, Círculo de Leitores, Temas e Debates;
- NORONHA, Eduardo de “O Intendente Pina Manique”, Livraria Civilização, Porto, 1923;
- OLIVEIRA, Eduardo Freire de, Elementos para a História do Município de Lisboa,  CML, vols. II a VI ;
- RODRIGUES, Alberto Filipe, A Guarda Real da Polícia, Esboço Histórico (1801-1834),  Tip.LigaComb. G. Guerra, GNR, Col. Gustavo M. Sequeira, 1994;

 

 

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