Profissões, Artes, Ofícios Mecânicos, Cargos e Tipos Sociais em Lisboa na Época Moderna: O Oleiro

Um oleiro a trabalhar. Biblioteca M. Nuremberga. https://www.medievalists.net/
Natureza Morta com Doces e Barro. Josefa de Óbidos - Óleo sobre tela, c. 1676. Bibl. Mun. Braamcamp Freire
Panela rejeitada: Artefatos arqueológicos - R. do Benformoso, Lisboa, Sécs. XV-XVI. Museu de Lisboa
Pratinhos especieiros: Artefatos arqueológicos - R. do Benformoso, Lisboa, Sécs. XV-XVI. Museu de Lisboa
Pucarinho: Artefatos arqueológicos - R. do Benformoso, Lisboa, Sécs. XV-XVI. Museu de Lisboa
Taça em Faiança: Artefatos arqueológicos - Largo das Olarias – Travessa do Jordão, Lisboa, Sécs. XVI-XVII. Museu de Lisboa (col. Part.)
Prato em Faiança: Artefatos arqueológicos - Largo das Olarias – Travessa do Jordão, Lisboa, Sécs. XVI-XVII. Museu de Lisboa

Desde há muitos séculos que o homem aprendeu a moldar o barro, criando artefatos de grande utilidade quotidiana. Os recipientes cerâmicos tornaram-se fundamentais para a manutenção, preparação e consumo de alimentos: púcaros, cântaros, potes, panelas, alguidares, tigelas, pratos e boiões… para todos os gostos e funções, moldados a partir de matéria-prima utilizada por todas as civilizações, refletiram a matriz cultural do nosso povo.

Eram os mestres oleiros que nas suas oficinas davam forma a peças e utensílios com diversos fins, marcando a importância da sua produção - não só no abastecimento das populações, como no desenvolvimento de segmentos de oferta variados – contribuindo para o tecido produtivo e consolidando centros produtores regionais.

A profissão de Oleiro - oficial que faz louça de barro - fixou em Lisboa gentes que se dedicaram a este labor por gerações. Esta atividade deverá ter sido uma constante na cidade de Lisboa, e surge na historiografia e bibliografia científica como sendo ocupação de grande parte dos habitantes do histórico bairro da Mouraria - fundado logo após a conquista cristã da cidade por D. Afonso Henriques (1147) - até finais do século XVIII, tendo o seu maior vigor no Período Moderno.

Era fora da cerca fernandina entre Stª Bárbara, S. Jordão e o Monte S. Gens que se estendia o agrupamento fabril das olarias. Nos alvores de quinhentos o sítio das olarias não estava inteiramente ligado à cidade baixa, situava-se no “arraualde novo da Mouraria da dita cidade homde estão os olleiros” (Correia.1918. p.532) A expansão do bairro, acelerou nesta centúria, dando continuidade ao processo iniciado no século anterior.

Em 1565 os oleiros concentravam-se sobretudo em Stª Justa, mas com a reorganização das freguesias do Cardeal D. Henrique (1564-1569) passam a incluir-se na freguesia de N. Srª dos Anjos e mais tarde em Nª Srª do Socorro. A expansão foi-se desenvolvendo tendencialmente em direção aos principais eixos de entrada e saída da cidade.

A atividade neste local, cumpria os preceitos legais de se estabelecer extramuros, a par de outras indústrias de risco. Teria beneficiado da abundância da água, da proximidade às matérias-primas de afamada qualidade, retiradas das encostas dos montes sobranceiros. Adquiriu relevância tal que, a partir do séc. XVII passou a surgir na documentação a designação de “Bairro das Olarias” ou “às Olarias”, transformando este local num dos mais importantes de produção cerâmica da cidade, desde o fim da Idade Média até ao fim da Idade Moderna. Fixaram-se na zona de maior densidade populacional e habitacional: a zona urbana, evidenciando-se o norte do bairro da Mouraria (partindo do exterior do postigo de Santo André, descendo a colina da Graça até ao Benformoso). Marcaram presença também na zona de transição, desvanecendo-se à medida que a paisagem assume uma feição rural. Reflexos dessa importância conservam-se em 4 topónimos: Largo das Olarias, Rua das Olarias, Beco das Olarias e Escadinhas das Olarias. Conhecidas como “olarias orientais”, distinguiam-se das “olarias ocidentais” da cidade, estas localizadas em Santos-o-Velho e Santa Catarina, também elas expressivas neste período.

Apesar de “oleiro” não corresponder sempre a artesão de louça vermelha, a produção das “olarias orientais” de Lisboa, terá sido predominantemente centrada na cerâmica mais comum, com especial destaque para o barro vermelho, tipologia associada à preparação e consumo alimentar.

Do vasto leque de produção oleira, entre as mais modestas de uso diário - como as peças de barro vermelho - às mais exuberantes peças decorativas - como as preciosas faianças ou porcelanas refletia-se a feição criativa do nosso povo. Satisfaziam necessidades diárias da cidade de Lisboa, nomeadamente serviam usos domésticos, (na conservação, preparação, cozedura de alimentos e serviço de mesa) no apoio à higiene diária, como materiais de decoração e construção.

As produções lisboetas teriam alguma fama dentro do reino, Júlio de Castilho considerou as cerâmicas lisboetas do século XVI dotadas de uma “fisionomia especialíssima, (…) o pucarinho, a rechinchar como frigideira ao contacto com a água; a bilha ou quarta caseira, (…) a telha mourisca dos telhados nacionais (…)(Castilho.1935.p.264-265). Este autor faz alusão aos púcaros, que apesar de serem pequenos objetos de uso mais popular, eram particularmente apreciados e valorizados também por estratos sociais mais elevados.

“A olaria nacional, refletia na sua decoração histórias interessantes de referências políticas, alusões patrióticas, recordações da vida monástica, versos, frases amorosas, escudos de armas, símbolos heráldicos” (Queirós.1987.p.50)

Entre os sécs. XVI e XVII a olaria portuguesa passou por um período de transformação, quer na forma quer decoração, acompanhando a evolução dos hábitos alimentares e as tendências das modas europeias e orientais.

Após conquistar uma crescente atenção desde a Idade Média por parte da administração real, estabeleceu-se uma regulação em 1539 onde se constituiu o ofício de oleiro com os telheiros “e os que fazem malgas”. Culminou este processo em 1572 com o Regimento dos Oleiros de Duarte Nunes Leão, para a cidade de Lisboa. Esta regulação mostrou-se muito pormenorizada quanto ao exame de louça vermelha e vidrada, reforçando as técnicas de enfornamento, cozedura, vidragem, revestimento de chumbo, importância das medidas e capacidades das cerâmicas. Regulou mais abreviadamente os telheiros e tijoleiros e foi omissa no que respeita ao labor dos azulejos.

O ofício de “oleiro”, obedecia a uma hierarquia: 5 anos de aprendiz, 2 anos de obreiro para passar a oficial e caso pretendesse ser mestre e colocar tenda, teria de realizar um exame de especialização consoante a tipologia cerâmica: louça vermelha; louça vidrada (verde); louça vidrada (branca/porcelana ou faiança); fabricantes de telha e tijolo.

A profissão de oleiro - ofício mecânico, enquadrado nas artes não liberais - assistiu a uma crescente valorização social e económica que atingiu o seu auge na Idade Moderna, com profusa produção de documentos normativos “pode considerar-se a época de oiro das olarias, aquela em que os órgãos governativos mais se preocuparam com a sua regulamentação” (Fernandes.2012.p.15). Este destaque também se refletiu nos festejos por ocasião da visita do novo monarca, rei Filipe III (II de Portugal) a Lisboa em 1619. Entre os arcos triunfais que se ergueram, o dos oleiros firmou a importância do seu mester. Faziam-se representar na Casa dos 24 encabeçando a sua bandeira, com os telheiros como anexos.

Os regimentos estabeleciam as tipologias de produção, as dimensões das peças, os locais recomendados e interditados para a recolha do barro e construção de fornos, os locais de venda e preços dos produtos, a marcação das peças, os impostos a pagar, os preços de examinação, o valor dos salários, ou a composição da pauta da bandeira da sua padroeira Stª Justa e Rufina, que se recompunha no tempo, consoante a representatividade do mester.

Entre os séculos XVII e XVIII, muitos dos oleiros integraram-se na Irmandade do Senhor dos Passos da Graça, onde se encontrava inscrita grande parte da aristocracia de Lisboa, facto que terá contribuído para conquistar alguma distinção.

A distinção também se refletia na valorização de algumas peças de pendor mais popular e modesto, como os afamados “púcaros da Maya” ou “púcaros de Romão” de fino barro vermelho, frequentemente identificados como sendo de Lisboa, particularmente das “olarias orientais”. Os humildes vasos produzidos em cerâmica vermelha, de características “delicadas” e “formosas”, eram cobiçados largamente por todos os estratos sociais. Vulgarmente conhecidos como “cheirosos” e “saborosos” - especialmente aqueles que se chamavam de “aletria” de um barro também odorífero – e de tal maneira assim era, que havia a tentação de os trincar e comer. (Vasconcelos.1921.pp 159-165).

Júlio de Castilho a eles se refere, como produção da fábrica do célebre “Romão”, oleiro que laborava às olarias orientais “que fazia umas bilhinhas que eram uma delícia em novas (quando serviam muita vez perdiam a graça (…) toda a gente apreciava imenso os tais pucarinhos do Romão, que faziam a água muito fresca; (…)“(Castilho.1935.p.279).

A olaria da Época Moderna obedeceu a uma estratificada rede de tarefas, no topo da cadeia o mestre oleiro que trabalhava a roda, na base aqueles que se dedicavam aos trabalhos mais pesados, de menor qualificação. Deduz-se através de documentação conhecida que por essa altura, as olarias seriam pequenas unidades familiares de produção, ao qual poderia acrescer pessoal contratado. Cada proprietário da olaria habitava na sua casa ao mesmo tempo oficina e tenda, a qual possuía um anexo no quintal, podendo ter um forno para cozer a louça, e nas imediações os pintores de louça e azulejo. Partilhavam o espaço “(…) não mais do que 3 ou 4 pessoas, em média, (…) sob as ordens do mestre trabalhavam obreiros e oficiais. Aprendizes ou moços pequenos prestavam ajuda e faziam recados (…)” (Serrão.1971.p.44)

Sendo o oleiro o cabeça de fogo, atribuía as tarefas de menor complexidade aos restantes, mulher, filhos ou outros parentes, criados, aprendizes e demais co-residentes que transportavam a água e lenha, extraíam e amassavam o barro, preparavam a pasta, bruniam a louça, vendiam os produtos, e até raspavam ou roçavam os púcaros “quando o uso os havia deslustrado” (Vasconcelos.1921.p.165). Esta atividade promoveria algum desafogo financeiro, particularmente nas unidades oficinais de maior vulto, que contavam com obreiros, criados e almocreves, estes últimos integravam a equipa de comercialização no abastecimento e transporte para os locais de venda. A exploração de uma tenda/oficina por uma mulher, apenas poderia acontecer na condição de viuvez, como na maioria dos ofícios mecânicos.

A progressiva especialização deste tipo de trabalho levou à sua pré-industrialização assistindo o séc. XVIII ao desaparecimento da hegemonia das olarias de Lisboa na produção cerâmica que caracterizara a centúria anterior, dando origem a fábricas de maiores dimensões, como o exemplo da Fábrica Viúva Lamego (no Intendente) que se constituiu como uma marca relevante na produção cerâmica neste espaço, desde meados do séc. XIX até ao primeiro terço do séc. XX.

Fátima Aragonez (GEO - Núcleo de Demografia Histórica)

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