Artes e Ofícios de Lisboa na Época Moderna. O Conteiro

Fabricante de contas de Rosário. Gravura. Enciclopédia de Diderot-Benard. 1751.
Artesão a moldar contas paternoster a partir de um pedaço de madeira com um furadouro. Leopold n.n. 1414, Museu Nacional Germânico.
Insegna dell'arte dei Coroneri. Pormenores. Francesco Guardi. 1750. Ca' Rezzonico, Veneza.
Insegna dell'arte dei Coroneri. Pormenores. Francesco Guardi. 1750. Ca' Rezzonico, Veneza.
Madonna del Rosario. Pormenor. Lorenzo Lotto. 1539. Igreja de São Domingo, Macenata.

 

A arte de conteiro surgiu e afirmou-se no sólido universo religioso da sociedade portuguesa. Entre o final da Idade Média e o alvor da Época Contemporânea o seu principal labor foi o de fazer contas para Rosários; contas feitas para rezar, compassando a litania de Ave-Marias e Padres-Nossos.

A origem do contador de orações - o Rosário na tradição cristã - perde-se na História da civilização. O ancestral e universal ato de proferir vocalmente pequenas orações de repetição acompanhadas pelo desfiar de contas, sementes ou pedras enfiadas num cordão tem manifestações em várias religiões e filosofias: na Islâmica (Subha), na Hindu (Japamala), não esquecendo o judaico Saltério de David ou até certa similaridade ao oráculo africano Ifá - evidência que de algum modo terá fascinado os africanos que chegados a Lisboa no âmbito da expansão ultramarina foram constrangidos a familiarizar-se com o Rosário.

A devoção a N. Sra. do Rosário expandiu-se gradualmente pelos meios urbanos e rurais e estava já em pleno florescimento em meados do século XV em altares e confrarias com invocação do Rosário por toda a Europa ocidental. A criação destas confrarias foi um importante móbil na divulgação da oração. O despojamento e o alcance desta devoção, que era simbolizada por uma coroa de rosas oferecida à Virgem Maria como expressão do amor e piedade cristãos, promoveu a sua rápida aceitação pelo povo que podia proferir as suas orações em coro e em voz alta, de joelhos ou em pé, na igreja, em casa, na rua (AZEVEDO, 585).

Em Lisboa, c. de 1484, já se praticava o culto do Rosário na igreja do Convento de São Domingos, curiosamente o mesmo templo onde em maio se celebrava a Festa das Rosas. A heterogénea base social da corporação irmanava toda a população, incluindo a população escrava que acabou por deter em Lisboa, em 1551, uma Confraria do Rosário dos Homens Pretos e que seria replicada noutros templos da cidade. As confrarias de N. Sra. do Rosário e as orações do Rosário e do Terço estenderam-se a todo o território português. A divulgação da oração fez do Rosário e do Terço objetos pessoais de grande devoção entre os católicos. Sempre na posse do seu dono, ao pescoço, nas vestes ou no lar estes objetos, quando benzidos, pelo seu carácter protetor revestiam-se ainda de maior virtude. Foi o fenómeno devocional expresso no desfiar de Ave-Marias em contas do Rosário que levou ao desenvolvimento do ofício de conteiro. A ampla procura e a elevada produção destes objetos nas tendas dos artesãos de vários centros urbanos permitia que chegassem a todo o reino pelas mãos de ermitões, peregrinos e vendedores ambulantes.

A Profissão Conteiro

O ofício de conteiro integrava a corporação dos mesteres de Lisboa juntamente com os ofícios de sombreireiro e de chapeleiro, sob a proteção de S. Miguel. O mais antigo regimento que superintendia o bom funcionamento da corporação e a qualidade das suas obras data de 1501 e detalhava tudo o que dizia respeito ao bom desempenho do ofício. Em conformidade com a organização urbana dos mesteirais, tinham um arruamento próprio que estava localizado perto do Rossio e a caminho do Carmo, junto do convento do Espírito Santo da Pedreira [algumas das suas reminiscências nos atuais Armazéns do Chiado].

Com um período de aprendizagem de cinco anos, findos os quais o artesão era examinado, o conteiro estava apto a manter a sua própria oficina e tenda cuja qualidade manufatureira era periodicamente vigiada pelos mestres examinadores que percorriam as tendas em laboração. Também muito atentos à venda de falsificações (como contas de pau de Castela por pau de Moçambique, ou de pau do Brasil vermelho por sândalo) que puniam com castigos e multas.

Na época, os materiais mais usados na manufatura das contas eram a pedraria, o osso (adquirido no matadouro da cidade) e madeiras como o pau-preto, a aguila branca, coquilhos e roca. Com ferramentas (como a bruja, ferro para furar a obra, ou vazador) e as técnicas da profissão esperava-se que o artesão fosse capaz de produzir alguma variedade de contas, cruzes e extremos.

Nos regimentos do século XVI não há indícios de produção de contas para fins de adorno pessoal como colares e pulseiras de contas, o que provavelmente fariam, cabendo a produção de joias aos ourives da prata e de ouro, e os outros enfeites como fitas, galões e outros adornos eram manufaturados por artesãos de têxteis.

A Casa Batalha é a derradeira representante da memória dos antigos conteiros de Lisboa. Recuando a 1637 - data em que o conteiro João Cipriano Rodrigues Batalha terá iniciado a sua atividade em Lisboa – a casa ainda hoje comercializa contas e bijutaria, tendo inclusive permanecido até ao final do século XX na antiga área geográfica da produção de contaria da capital.

 

Mais alguns antecedentes do culto do Rosário

Pelo menos desde o século XII que já era práxis nos mosteiros cristãos a recitação diária de 150 salmos bíblicos (os leigos proferiam 150 Pai-Nossos) que compassavam com o desfiar de nós feitos em cordões. É deste período a consagração do Saltério Mariano - oração vocal que passou a intercalar passagens evangélicas com Ave-marias.

Segundo a hagiografia, terá sido a aparição da Virgem a Domingos de Gusmão (fundador da ordem dominicana) e a revelação do poder do Rosário enquanto “arma” para a conversão que o celebrizou definitivamente. Passaria a designar-se de Rosário da Bem-aventurada Virgem Maria.

A difusão do culto Mariano e do rito do Rosário intensificou-se a partir do século XV, com maior ímpeto na segunda metade aquando do movimento de reforma católica pré-tridentina, sob o desígnio de nova orientação espiritual, devocional e pastoral (AZEVEDO, 583). A palavra Rosário significa “coroa de rosas” invocando a flor que por ser símbolo da graça, o Cristianismo adotou como representação de Maria “A rosa branca, tem o significado de ligação forte com a Virgem Maria por ser a Senhora Cheia de Graça, testemunho da pureza celestial da Mãe de Deus, símbolo da graça e do dom do amor” (SILVA, 78).

Ao longo do século XVI várias bulas papais revestiram o culto de maior importância. O Papa Pio V (1566-1572) instituiu a festa de Nossa Senhora do Rosário como evocação da importante vitória naval de Lepanto (7 de outubro de 1571) onde se opuseram as forças do povo cristão da Europa e as forças do império Otomano.

Delminda Rijo (GEO - Núcleo de Demografia Histórica)

 

FONTES

AML-AH, Casa da Almotaçaria, Livro 2º da Casa da Almotaçaria, doc. 43, f. 18v. a 20.

AML-AH, Casa dos Vinte e Quatro, Livro 1º do acrescentamento dos regimentos dos oficiais mecânicos.

BIBLIOGRAFIA

AZEVEDO, Carlos Moreira (Dir.), História Religiosa de Portugal, vol. 2, Círculo de Leitores, 2000.

SILVA, Alcina Silva Santos, As Flores na pintura da “Anunciação” nos séculos XVI e XVII. A Simbologia Cristã e a Arte Decorativa, Porto, Dissertação de Mestrado, 2011, p. 79.

LANGHANS, Franz-Paul, As Corporações dos ofícios mecânicos. Subsídios para a sua história, Lisboa: Imprensa Nacional de Lisboa, vol. 2, 1946.

 

 

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