Profissões, Artes, Ofícios Mecânicos, Cargos e Tipos Sociais em Lisboa na Época Moderna: O BARQUEIRO
A ligação ribeirinha de Lisboa ao Tejo, tem sido uma constante na história da cidade. Esta relação foi assegurada por barqueiros, que se destacaram por dinamizar o comércio interno. Utilizavam as suas embarcações, para suprir as necessidades diárias de abastecimento da cidade, sobretudo no transporte fluvial de pessoas e bens de consumo, essenciais ao quotidiano da população.
A atividade do barqueiro, associa-se ao transporte de pessoas ou mercadorias, entre as margens de um rio ou cursos de água, ao longo da costa, assumindo curtas viagens entre portos, navegando em modo de cabotagem. As barcas articulavam a atividade piscatória com a mercantil e ao incluir um número mais reduzido de tripulantes, facilitavam a entrada em pequenos portos (Madureira, 41).
Alguma ambiguidade nas atividades destes homens, que se refletia na ocorrência de situações, em que os barqueiros de profissão exerciam o ofício de pescadores e vice-versa. O edital de Senado de Lx de 5/9/1766 sobre a proibição de redes de arrastar, refere-se a “todo o pescador e qualquer outro barqueiro que usarem das redes de arrastar nas pescarias (…)” (Caetano, 10). Podemos perscrutar diferentes categorias de barqueiros: pescador, pescador-transportador, pescador-transportador-vendedor. Podiam ainda complementar a sua atividade fazendo travessias como “mestre de barca” e “mestre de navio” comprando pescado para levar para fora da cidade. (Madureira, 42). Passa a ideia de que, as subcategorias de barqueiro não eram funcionalmente rígidas, contudo, para ser “barqueiro” teria de cumprir os requisitos de um ofício mecânico.
Num tempo em que, o transporte terrestre era mais oneroso, demorado e dificultado pelos reduzidos acessos viários, aliado aos constantes perigos de roubos e emboscadas, o transporte fluvial e a navegabilidade nos cursos de água facilitavam o tráfego interno. O barqueiro garantia a conexão entre as vias terrestres, fluviais e marítimas (Marques, 312), constituindo-se como um verdadeiro intermediário no abastecimento entre a cidade e o campo. O destino de quem se aventurava a navegar, era colocado para lá dos conhecimentos náuticos, resgatava-se uma proteção superior divina, por vezes atribuindo o nome de um santo à embarcação. A pertença a confrarias e irmandades, conferia proteção e auxílio, particularmente em momentos de infortúnio. Esse amparo, poderia ser procurado pelas gentes marítimas de Lisboa, junto da confraria de Nª Srª da Graça e Corpo Santo, que tinha assento na Ermida de Nª Sra da Graça e S. Pedro Gonçalves, (junto ao Cais do Sodré), a que os marítimos e navegantes chamavam de Corpo Santo e os castelhanos S. Telmo (Câncio, 72).
Na centúria de quinhentos, Lisboa era uma cidade portuária pujante, com intenso comércio intercontinental. Dada a importância do ancoradouro de Lisboa, como um dos principais portos do mundo, nele poderíamos encontrar gentes de todas as nações, e mercadorias que chegavam à cidade em enormes navios e naus, provenientes de todos os reinos e de todas as nossas conquistas, como especiarias, açúcares, conservas, tecidos, sedas, tapeçarias ricas, pedras preciosas, porcelanas, escravos… outras saíam carregadas de uma variedade de bens, os quais dispúnhamos em abundância, em especial, o sal, vinhos, azeite, carne, peixe… Neste panorama, formigavam os barquinhos de carreira, em grande azáfama diária e apinhados de gente, e se faltassem portos ou cais, desembarcava-se nos extensos areais das margens, tarefa difícil que com grande frequência resultava em acidentes ou pernas partidas (Castilho,87).
Os barqueiros participavam neste frenesim diário no seu labor, constituíam-se como figuras de proa, indispensáveis na vida das populações ribeirinhas. Asseguravam o embarque/desembarque/ de pessoas e bens, de embarcações de maior porte, fundeadas no rio e garantiam os circuitos diários das carreiras da cidade, deslizando e sulcando as águas, para cá e para lá, entre a margem norte e sul do rio, a remos ou à vela, desafiando os ventos, e enfrentando a agitação marítima. A tipologia das embarcações era muito diversificada, consoante a carga ou serviço: a Barca da Aldeia Galega (Montijo) para o transporte da madeira, a Fragata de Alcochete (lenha), o Barco de Moinhos (farinha), a Bateira do Porto Brandão (pedras), o Barco de Moios (areia), a Falua e Catraio (passageiros), e para a pesca, o Batel e a Muleta, entre outros tantos, representados em gravuras executadas em 1785 - da autoria de Ramalho S. – e que João de Souza compilou, nos Cadernos de Todos os Barcos do Tejo.
O atual Campo das Cebolas, (onde se situava a antiga Ribeira Velha) associa-se historicamente à atividade portuária e mercantil da frente ribeirinha de Lisboa. Estando a cidade voltada ao rio, algumas comunidades piscatórias e marítimas se desenvolveram em Alfama, Madragoa (antigo Mocambo) e Mouraria. O mercado da Ribeira Velha impunha-se na localização, pela proximidade ao rio, e a ocupação de “barqueiro” registava, segundo a descrição de Frei Nicolau de Oliveira em 1620, quantitativos relevantes. Ficava o mercado a nascente do edifício da Alfândega, como um dos mais importantes mercados da cidade, (desde o séc. XVI até ao Terramoto de 1755, altura em que foi relocalizado junto ao Cais de Santarém). Ocupava à data a cidade de Lisboa, em comprimento de Belém até S. Bento de Xabregas, quase duas léguas, onde existiam continuamente casas, e quintas. Contavam-se 900 barqueiros de ganhar, que navegavam em barcos pequenos no rio, cerca de 60 asseguravam o transporte de pessoas, e no porto de Lisboa mais de 1500 barcos de pesca, pelas grandes possibilidades piscatórias, e em atividades comerciais entre as duas margens. Para o serviço de carga/descarga, contariam os barqueiros com o trabalho de carreteiros e de ribeirinhos e ainda com outros indivíduos, que procuravam oportunidades de serviço, entre eles, “300 mariolas que andavam às cargas” e “200 patifes que andavam na ribeira a ganhar com a feira” (Oliveira, 451-565).
A margem esquerda do rio, criou um conjunto de atividades económicas, que funcionava como uma espécie de extensão do termo da cidade de Lisboa, com a qual partilhou a produção e consumo. Este espaço, funcionou como mercado abastecedor de uma série de produtos de primeira necessidade e contava com quintas agrícolas, fornos, moinhos de maré e vento, exploração se salinas, pinhais - essenciais para comercialização de madeiras e lenhas, para as populações e indústrias - vinhas, pescado seco e salgado, moagem de farinha, caça, carvão e palha. Todos estes bens se transportavam por barco, principalmente das vilas de Almada, Alcochete, Aldeia Galega (Montijo), Caparica, Amora, Seixal, Barreiro, Alhos Vedros, Moita, Lavradio e Coina. Nestas localidades, instalaram-se equipamentos e infraestruturas de apoio nas povoações ribeirinhas, como os estaleiros navais. Outros, de feição artesanal situavam-se no Caramujo, Margueiras, Ginjal e Porto Brandão.
Os navegadores (arrais) e construtores navais que se instalavam junto às populações ribeirinhas, criaram embarcações que se diferenciavam, consoante os percursos, e funções (transporte e pesca) refletindo-se neles a identidade cultural das várias comunidades. Os operários de construção naval distribuíam-se por várias povoações ribeirinhas, ao longo desta margem nomeadamente, Porto Brandão, Margueira, Mutela e Amora.
O Regimento dos Barqueiros de 1572, reflete a especialização, nos vários tipos de embarcações: batel, caravela, caravelões, muleta e a barca. Esta última, vigorou até à Idade Moderna como designação mais comum, atribuída a qualquer tipo de embarcação de pesca ou fluvial. Esta regulação, visava melhorar a segurança marítima, os conhecimentos e a perícia necessários à atividade do barqueiro, o qual se deveria acompanhar de arrais e companheiros todos portadores de licença. Entre os requisitos estipulados, deveria saber “meter uma vela e tirá-la com vento fortuito e manobrar o leme”, fazer-se munir de velas, fateixas, âncoras, remos, pranchas para permitir o transbordo dos animais para terra, cujo transporte só se deveria realizar com águas calmas. As disposições estabeleciam os valores adequados e máximos a cobrar pelos fretes, para as naus da Índia, para as carreiras no estuário e para as viagens mais longas para o Médio Tejo (Abrantes, Tancos, Constância, Santarém), podendo ser diferentes em acordo entre as partes, apenas em serviços que decorressem em período noturno.
As embarcações das carreiras para Almada, Aldeia Galega e Santo António [do Tojal], foram, neste regimento, as que mereceram particular atenção. Limitava-se a circulação de uma barca em cada maré, tendo de partir à vez no caso da carreira do Montijo, cuja embarcação deveria ter um peso superior a 200 “moios” (uma certa unidade de medida/peso) por segurança. Para a travessia de Almada, o barqueiro não poderia levar mais de 12 de pessoas a bordo e vice-versa. A determinação do limite de pessoas e bens a bordo, imperava pelos exageros que se cometiam de exposição ao perigo. Por exemplo: nenhum barco que passasse de Almada ou no esteiro do rio Sacavém, podia levar mais de 8 pessoas, por a desembocadura daquele rio, ser demasiado perigosa. A adequação de peso à embarcação era de extrema importância, devendo utilizar-se lastro (areias ou outro peso) para manter o peso conveniente.
Nem todos podiam ser barqueiros, proibia-se “qualquer homem mourisco, índio, preto, mulato, forro ou cativo” de conduzir qualquer barca, para evitar a fuga e impunha-se ao barqueiro, caso não pernoitasse na sua barca, levar consigo alguns equipamentos como a vela, o leme e os remos, para não criar ocasião. Levar escravos em embarcações, só na presença do seu proprietário, com pagamento de fiança, para o caso de fugir ou fazer algum estrago.
As penas por incumprimento, podiam ser pecuniárias, corporais, cadeia, penhora e queima da embarcação ou até mesmo o degredo.
Apesar da vizinhança de Lisboa já abastecer a cidade, de toda a espécie de mantimentos, principalmente de produção agrícola, como hortaliças, frescos, laticínios, vindos da zona saloia, através do rio Sacavém (Trancão), era no Tejo, entre as duas margens, que girava grande parte da vida económica e social. As ligações regulares entre a cidade e a “banda d’além” estabeleceram as carreiras diárias, as quais, asseguradas por uma diversidade de embarcações, abasteciam a cidade de produtos indispensáveis à população: carnes variadas, cereais, farinhas, azeite, vinho, pescado variado de que o rio era muito rico, do mais popular e importante no abastecimento das populações mais pobres, como a sardinha, a outros muito apreciados como o sável, corvina, linguado, marisco, para gostos mais requintados. Outros produtos de primeira necessidade, como o carvão, o sal, a lenha e a palha, não podiam faltar na capital.
O local de origem e os tipo de produtos que chegavam à cidade, deram nomes aos cais, como o Cais do Tojo, Cais do Carvão, Cais da Madeira e ainda consoante a proveniência, Cais da Aldeia Galega, ou o Cais de Santarém. Na zona oriental, eram os conventos e quintas que pontuavam e davam o tom ao sitio, profundamente ligado, assim, à estrutura social e económica do Antigo Regime, com cais que se distribuíam pelas margens, na Cruz da Pedra, Madredeus, Xabregas, Grilo, Beato António, Poço do Bispo, Matinha e Braço de Prata. Zona fértil em hortas, de implantação de casas conventuais dotadas de pomares e várias cercas, de quintas aristocráticas e palácios, alguns tinham acesso privilegiado ao rio, através de cais privados.
Esta pequena “viagem de barco” no Tejo, reflete a importância que os barqueiros tiveram no Período Moderno e a sua intensa atividade no porto de Lisboa, o qual, para além de se ter firmado de grande importância na expansão e no comércio global, teve de se adaptar às necessidades agrícolas, comerciais e industriais que o tempo foi moldando. Quanto às embarcações coloridas e animadas que outrora sulcavam o rio, como eram exemplo as faluas, fragatas, batéis, barcas ou varinos, resta-nos agora pontuais iniciativas municipais ou governamentais, de âmbito cultural, no sentido do restauro patrimonial para preservação da memória viva das comunidades.
Fátima Aragonez
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