A Cristaleira
A prática da medicina em Portugal, no período Moderno, assentava no saber milenar dos clássicos: a teoria humoral ou dos fluídos corporais (bile amarela, bile negra, fleuma e sangue) concebida pelo grego Hipócrates (460 a.C. - 377 a.C.), à qual Galeno (d.C. 129- c.201 d.C.) relacionou a teoria dos quatro temperamentos (sanguíneo, fleumático, colérico e melancólico), e que seriam posteriormente revistas por Avicena (980-1037). O principal pressuposto era o de que a saúde dos corpos dependia do equilíbrio dos humores corporais, enquanto o excesso ou défice dos mesmos fluídos, davam lugar à doença.
Em caso de doença, a recuperação da saúde dependia da intervenção de um médico, que propunha os métodos terapêuticos adequados e que supervisionava as terapias mais eficazes para o equilíbrio dos humores, sobretudo a sangria, sudação, aplicação de eméticos e de purgativos. Era um reduzido leque de opções terapêuticas, mas que estavam amplamente generalizados na sociedade portuguesa. De tal modo que segundo observou um visitante inglês do século XVIII, Thomas Cox, no seu diário de viagem “Relação do Reino de Portugal” (1701), eram o remédio para todos os males - mandar sangrar os doentes, tomar clisteres e comer caldos de galinha (Cox,).
No Hospital Real de Todos os Santos existia um corpo médico e assistencial multifacetado cujas abordagens eram baseadas na dita filosofia de cura de extração dos maus humores: purgar, tomar apózemas, cordiais, tisanas, soros, aplicar sangrias, sanguessugas, clisteres, banhos, caldas, fontes e suores. E para a sua execução, o hospital empregava profissionais, uma espécie de artesãos do corpo - barbeiros e cirurgiões, boticários, cristaleiras e parteiras. Práticas e saberes que não se limitavam à esfera de atuação do Hospital Real e de outras instituições de assistência, estando também muito difundidas junto da população.
A cristaleira era, a par da parteira, a mulher artesã que trabalhava na área da medicina, e à qual competia executar a aplicação de clisteres purgativos. A importância das cristaleiras que “lançavam ajudas” [Bluteau, p. 614], e que estavam ligadas ao hospital, valeu-lhes até uma bem conhecida designação toponímica, pelo menos desde o século XVI, localizada na vizinhança do Hospital Real de Todos os Santos, ao Rossio, e que perdurou até 1755 – que era o popular Beco das Cristaleiras.
Estas mulheres exerciam também a sua profissão noutras instituições, como a Inquisição, em conventos, nos Paços, e em quaisquer casas da cidade. Porém, para que o seu exercício foi válido, era previamente submetida a um exame, que era realizado pelo físico da cidade e depois confirmado pela Câmara de Lisboa, entidade que lhe passava a carta de ofício. Entre as suas obrigações e funções, a cristaleira teria sempre disponível, em casa, o equipamento necessário à aplicação do “cozimento para as ajudas”. “Cozimento” esse que era uma preparação medicinal, em calda, que era depois aplicada através dos cristéis, e que era feita à base de “malvas, celgas, urtiga, murta, folhas de violas, malvaísco, água de farelos, azeite, mel e sal” e nenhuma outra erva ou mezinha da botica, ainda que o doente o pedisse, podia ser incluída na receita “salvo se for por mandado do médico que o cura” [Livro dos regimentos…, fl. 248v-249].
A higiene e conservação das caldas e dos utensílios eram temas também prescritos no Regimento sobre contaminação, medidas e quantidades regulamentares para adultos e crianças, e outras regras como por exemplo, a capacidade de avaliação da robustez e debilidade de cada doente “a doente robusto e esforçado e de bom sujeito lançar-lhe-ia no cristel até 18 onças de calda e 4 onças de azeite, e duas de mel e meia de sal” e apenas metade ao doente debilitado ou que fosse de pouca idade” [Livro dos regimentos…, fl. 248v-249]. Ou de salvaguarda para ambos os intervenientes, uma vez que a vulnerabilidade era do paciente, mas também do próprio desempenho, com a “obrigação” da cristaleira em “mostrar a algumas pessoas de casa o fole [e] como nele não fica calda nem azeite para que o doente saiba que levou bem tudo o que lhe mandaram lançar” [Livro dos regimentos…, fl. 248v-249]. O incumprimento das regras a que estava sujeita, e que pudessem colocar em causa o procedimento terapêutico tinham punição correspondente, em multas e prisão.
Em síntese estes eram alguns dos preceitos que envolviam o seu trabalho, embora a demonstração de destreza ou a falta de pessoal no hospital, por várias ocasiões lhes valeu o acréscimo de outras funções. Assim sucedeu a Guiomar Rodrigues, que sendo cristaleira do Hospital Real de Todos os Santos foi-lhe ordenado que “lance ventosas e sanguessugas às mulheres” [IANTT, Hospital de São José, liv. 941, fl. 191v, fl. 268].
Em meados do século XVIII, com o despontar de novos conhecimentos médicos e o aperfeiçoar de medicamentos, associado a algum descrédito destas práticas curativas, a crítica social começa a ganhar vulto. A literatura de cordel foi um desses meios, através da sátira sobre o quotidiano, acabando por estampar nas suas folhas volantes, de larga circulação, episódios satíricos e caricatos. O tema das cristaleiras, cujo ofício era só por si propenso a um certo burlesco, foi alvo de pelo menos uma folha designada de “Trabalhos de Clara Lopes, Exemplar de Cristaleiras, e Novo Método de Deitar Ajudas pela Crítica Moderna”. Publicado em 1751 explora com muita sátira, mas também com dados históricos sobre o ofício, a conduta de uma mulher curadora, Clara Lopes, que ao fazer o seu testamento descreve o seu percurso, e que entre outras profissões que rejeitou ao ficar viúva e sem rendimentos “elegeo o ofício de cristaleira, em que se distinguio das mais no aceyo, destreza, e bem temperado das caldas; nele perseverou o resto da vida, em que não só ficou exposta às vergonhas do mundo, mas também não lhe faltaram trabalhos (Trabalhos de Clara Lopes, Exemplar de Cristaleiras… 1751, p. 18). Sobre a utensilagem, o autor da folha de cordel não abrandando no escárnio, acaba por anotar alguns procedimentos de segurança e higiene “deixo o meu belo fole de botar as ajudas com o seu instrumento canudénico que he muito liso, agudo e muito subtil, e bem macio como bem vezes o experimentey, e dele tratava com tal cuidado e aceyo que sempre o tinha metido em algodão bem fino e o trazia untadinho com mel rosado para não escandalizar a claraboya da architetuyra, e edifício corporal que a natureza ideou no polo antártico e equinócio verno, ou globo septentrional” (Trabalhos de Clara Lopes, Exemplar de Cristaleiras… 1751, p. 7).
Conclui-se esta abordagem a tão importante, e algo embaraçoso, ofício da Época Moderna em Lisboa, no registo de Clara Lopes que avaliando a sua importância terapêutica, dizia de um doente «Coitadinho, está frenético; assim tenho achado alguns neste quarto minguante; é força de Lua; é preciso manietá-lo, deitar-lhe uma ajuda sobre o teso, e cobri-lo todo de sanguessugas, antes que lhe suba o sangue aos miolos» (Trabalhos de Clara Lopes, Exemplar de Cristaleiras… 1751, pp. 9-10).
Delminda Rijo (GEO - Núcleo de Demografia Histórica)
Bibliografia
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COX, T. (2007). Relação do Reino de Portugal: 1701. [ed.] Biblioteca Nacional. Lisboa.
COSTA, A. F. L. F.. (2012). Assistência ao doente moribundo no século XVIII. Dissertação de mestrado. Universidade Católica Portuguesa. http://hdl.handle.net/10400.14/10118]
BLUTEAU, R.. (1713). Vocabulário Português e Latino. Vol. II, Coimbra: Real Colégio das Artes da Companhia de Jesus.
Opúsculo Trabalhos de Clara Lopes, Exemplar de Cristaleiras, e Novo Método de Deitar Ajudas pela Crítica Moderna. Sevilha: en la Emprenta del Correo Viejo, 1751.
RIJO, D. (2012). "História, Sociedade e Família em Santa Justa antes do terramoto de 1755: o palácio Cadaval, o Palácio da Inquisição e o Hospital Real de Todos os Santos". Rossio - Estudos de Lisboa 0 (2012): 63-84.
https://issuu.com/brunosilveiradacunha/docs/rossio_0_out_2012].
RODRIGUES, V. G., AVELAR, A. P.. (2020). Os Portugueses e a Ásia Marítima: trocas científicas, técnicas e sócio-culturais (séculos XVI-XVIII). Academia de Marinha, Lisboa.