Na história de Lisboa ocorreram dois eventos que alteraram significativamente a propriedade urbana na principal área económica da cidade: a expulsão dos judeus em 1496 e o terramoto de 1755. A expulsão dos judeus, ocorrida nos últimos anos do século XV, que levou à transferência de propriedade das judiarias para a Coroa e desta para vários outros intervenientes, e o terramoto de 1755, e a consequente remodelação urbanística pombalina, foram momentos que levaram a alterações profundas e de grande consequência na propriedade urbana. Ambos os eventos afetaram profundamente a zona da cidade mais ativa e dinâmica, tanto a nível comercial como social, desde a época medieval. Em ambos os casos, as autoridades centrais do reino tiveram um papel de grande relevância, sendo que a escala dos acontecimentos posteriores ao terramoto foi indiscutivelmente maior. Ainda assim, ambos os momentos marcaram de forma indelével a propriedade urbana da cidade de Lisboa.
Determinada em Dezembro de 1496 por D. Manuel, a expulsão dos judeus do reino português lançou para o mercado imobiliário lisboeta da época uma importante área da cidade, pois os judeus viram-se muitas vezes forçados a negociar as suas habitações a preços baixos, sob uma pressão evidente por parte das autoridades. Mesmo que muitas famílias tivessem permanecido nas judiarias, forçadas ao baptismo, outras abandonaram as casas e o bairro onde as suas famílias viviam, antes da fundação do reino, em alguns casos. Ainda que a maioria não tenha partido imediatamente para fora de Portugal, pois D. Manuel tudo fez para que tal não acontecesse, as judiarias de Lisboa estavam localizadas em zonas extremamente apetecíveis, perto das principais artérias comerciais, no centro económico da cidade, localização que era comum às várias judiarias do reino. Após a expulsão, a Sinagoga Grande de Lisboa e todas as suas vastas posses urbanas foram para as mãos da Coroa que em 1502 as trocou com a Ordem de Cristo pelos terrenos onde se construiria o Mosteiro dos Jerónimos, nas décadas seguintes, no local que o rei pretendia, junto ao Tejo, em Belém. Sem a expulsão tal não teria sido possível.
Dois séculos e meio depois, o terramoto de 1755, veio dar uma oportunidade dourada aos poucos que puderam manter e posteriormente rentabilizar as suas propriedades, através de um dos mais relevantes e originais processos de restruturação urbanística da época. A maioria dos edifícios demolidos no processo de restruturação da Baixa não necessitava de uma intervenção tão drástica. No entanto, a vontade de Sebastião de Carvalho e Melo, e das restantes autoridades políticas da época, aliadas à capacidade dos engenheiros portugueses, habituados a construir fortalezas e cidades no império ultramarino, permitiu que o antigo arrabalde ocidental da cidade medieval, a zona da cidade mais vibrante e relevante na vida comercial, económica e política da cidade, fosse totalmente arrasado e reconstruído com base num plano urbanístico inovador. A profunda remodelação da Baixa de Lisboa foi concebida numa lógica de rendimento do espaço urbano extremamente eficaz e proveitosa para os donos dos terrenos, afastando definitivamente uma multidão de pequenos proprietários e intermediários que faziam parte dos antigos e complexos processos de aforamento das propriedades urbanas que tinham ainda, em muitos casos, raízes medievais.
Manuel Fialho
Bibliografia
Baixa Pombalina, Lisboa. Revista Monumentos, nº 21. Lisboa: Direção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais, 2004.
Amélia Aguiar Andrade, “O desaparecimento espacial das judiarias nos núcleos urbanos portugueses de finais da Idade Média: o caso de Lisboa”. In Estudos de Homenagem ao Prof. Doutor José Marques. Vol. 1. Porto: Faculdade de Letras, 2006, p. 143-163.