Estação do Metro do Parque: um hino à Humanidade
Desembarcar no cais da estação do Parque é embarcar na história da grande viagem humana - com as suas realizações, contradições e incoerências, e a sua coragem e grandeza -, rumo ao desconhecido, ao mais além, ao fora de si.
A estação do Parque1, renovada em 1994, pelas artistas plásticas Françoise Schein2 e Frederica Mata3, tem como temas inspiradores a infinita criatividade e imaginação humana, as Descobertas e os Direitos Humanos4.
Nos 450 mil azulejos - todos pintados à mão e produzidos na Fábrica Viúva Lamego -, é contada a grande aventura das Descobertas, protagonizada pelos portugueses, e a grande aventura das descobertas, protagonizada pela humanidade ao longo da história.
O Homem é, aqui, a figura central desta extraordinária obra de arte. Por isso, a abóbada celeste que cobre o cais tem inscrita, linha a linha, parágrafo a parágrafo, os 30 artigos da Declaração Universal dos Direitos do Homem, proclamada em 1948, três anos após o fim da segunda guerra mundial.
É o Homem cosmos, "plural como o universo"5, na simultânea unicidade e pluralidade que o constitui - que torna cada homem, em si mesmo, na própria humanidade universal -, que Françoise Schein nos revela.
Sobre os azulejos pintados numa paleta gradativa de azuis, que revestem o vasto interior da estação do Parque, vão surgindo, em pequenos desenhos, quase como que estrelas, pensamentos e invenções humanos, símbolos religiosos e astronómicos, criaturas fantásticas e diversas figuras antropomórficas. Assim, ao longo das paredes do cais, é contada a grande epopeia das Descobertas representada em mapas tracejados com as rotas feitas pelos portugueses e, nos quais, aparecem as figuras dos vários navegadores que que se aventuraram nestas viagens.
Nada foi esquecido. E, lado a lado das memórias da grandeza da aventura humana, surgem também, de modo discreto mas impossíveis de ignorar, as memórias do outro lado da antiga história da humanidade: a constante violação fratricida do direito fundamental do Homem: o direito de ser pessoa, o direito de ser livre. Guerras, escravatura e invasões marcam também, de modo tristemente indelével, a história da Humanidade.
Para contar estas outras histórias, Françoise Schein escolhe, de modo belíssimo e absolutamente acutilante, a imagem de duas mãos que se unem6. Estas mãos, que, tocando-se, representam o encontro e a partilha das diversas culturas, são, também, as mãos que roubam, trocam e negoceiam a vida e a liberdade do outro.
Representados com silhuetas antropomórficas, com o corpo marcado por linhas longitudinais que evocam as grades das prisões, estão os homens que, ao longo da história humana, foram/são privados da sua dignidade e da sua liberdade. Estes são os homens, os "outros" homens, que foram trazidos nas galés como escravos, que foram/são aprisionados em lugares abscônditos, que foram/são torturados e mortos.
Esse "outro", esse homem que, na loucura e na cegueira individual ou colectiva, é tantas vezes visto pelo seu algoz como que sem rosto e sem humanidade, sem a preciosa unicidade irrepetível de cada homem, tem, afinal, o mesmo rosto que o seu agressor.
Um pequeno espelho7, tão pequeno quanto o tamanho dos azulejos que o ladeiam, está colocado, de modo quase invisível, ao lado de uma dessas silhuetas antropomórficas. Na contemplação do próprio rosto, visto a partir de fora, descobre-se o "outro", aquele cujo rosto foi/é ignorado, desumanizado, e foi/é vítima de atrocidades. Porém, o "outro" é a face que o espelho reflecte e nos obriga, assim, a trocar de lugar8. Tornamo-nos, de espectador passivo, nesse "outro" concreto cujo nome e história se desconhece.
É precisamente na senda desta interpelação colectiva, feita a cada indivíduo/observador concreto, em e na defesa do Homem, que será evocado, em 19959, um "outro" homem cuja vida e acções permaneceram esquecidas da maioria dos portugueses e do mundo: Aristides de Sousa Mendes10.
Na entrada da estação do Parque, uma escultura da autoria de João Cutileiro evoca este homem, um homem comum, que agiu11, temerariamente e deixando de lado a apatia conivente, em defesa da vida de homens, mulheres e crianças. A peça de Cutileiro, um esguio bloco de mármore semelhante a uma figura humana indistinta, tem, no lugar da cabeça, quatro orifícios, que permitem ver no seu interior uma singela medalha, em cujas faces é reproduzida a assinatura de Sousa Mendes, o ano de 1940 e o seu vulto.
Uma homenagem repleta de significado, que, tal como aconteceu em vida ao homem aí evocado, pode passar despercebida a quem viaje desatento.
Neste ano de 2024, repleto de importantes comemorações, somos convidados a (re)pensar e a (re)ver grandes figuras da história e grandes feitos humanos. Celebramos, deste modo, os quinhentos anos sobre o nascimento do grande rapsodo português, Luis Vaz de Camões; os quinhentos anos sobre a morte, em Cochim, do destemido Vasco da Gama; os trezentos anos sobre o nascimento, em Konigsberg, de um dos maiores filósofos de sempre, Immanuel Kant12; e os quinhentos anos sobre o nascimento, na Vidigueira, do grande humanista português, Aquiles Estaço13.
Assim, viajar até ao Parque e deambular debaixo da sua cúpula cerúlea, deixar-se levar pelas águas da ousadia e temeridade humanas, rumo aos lugares desconhecidos do espírito e da imaginação, surge-nos, assim, como um imperativo a cumprir.
Boa viagem!
Sofia Vasconcelos Nunes
1. Françoise Schein, artista belga de nascimento, tinha ainda projectado para o Parque, o "Café Cartográfico, que seria instalado por cima da estação. Esse "projecto acabou por ser suspenso e as esculturas, que já tinham sido produzidas, ficaram guardadas num armazém em Paris". Em 2022, estas 32 esculturas seriam integradas num novo projecto de Schein para a decoração da estação da Encarnação, na qual a artista regressa ao tema desenvolvido na estação do Parque, agora trabalhado num outro subtema: a ciência e as grandes Invenções da humanidade, descritas "num grande painel de azulejos com 12m de comprimento e 2,5m de altura, o Mapeamento inacabado do conhecimento". (Rec. 620/ 2022, TimeOut, nº 127, 21/09/ 2022, VIVA, pp. 1-2).
2. Françoise Schein: artist of the Human Rights: https://www.francoiseschein.com/
3. Frederica Mata, artista francesa, é a autora das "grandes colunas laterais" (Rec. 36/1994, VIVA, 1 de Outubro de 1994, p. 6-7), adornadas com elementos marinhos, figuras antropomórficas e um vasto bestiário fruto do imaginário humano, que suportam a grande abóbada dos cais e lembram as figuras de proa, ou popa, também chamadas carrancas ou leão de barca, que identificavam as embarcações e as protegiam contra os múltiplos perigos das viagens marítimas.
4. Este projecto integra uma obra mais vasta de Schein, "espalhada um pouco por todo o mundo, sob as cidades, nas suas estações de metro, nas quais figuram o texto dos Direitos Humanos de 1948 entremeado de imagens, textos filosóficos e literários e cartografias da cultura e história locais". (Rec. 620/ 2022, TimeOut, nº 127, 21/09/ 2022, pp. 1-2).
5. PESSOA, Fernando. Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação. Lisboa: Ática, 1966, p. 94.
6. Imagem de duas mãos.
7. A artista reproduz este convite à alteridade através da colocação de três espelhos, separados entre si por outras imagens. Lamentavelmente e talvez porque o espelho reflectiu/devolveu uma imagem pouco agradável, os três espelhos foram vandalizados e estão partidos.
8. Esta troca de lugar com o outro implica, necessariamente, a adesão ao ensinamento bíblico: "Faz aos outros o que queres que te façam"; ou, também, ao dever moral como imperativo categórico kantiano: "Age como se a máxima da tua acção devesse ser erigida pela tua vontade em lei universal" e, portanto, "age de modo tal que trates a humanidade tanto na tua pessoa como na pessoa de todos os outros sempre como um fim, nunca como um simples meio".
9. Lx: 656.2/4/ROL, UM METRO E UMA CIDADE. MARIA FERNANDA ROLLO, LISBOA, 2000,
10. Cônsul de Portugal em Bordéus, entre 1938 e 1940, Aristides de Sousa Mendes passou vistos e passaportes a uma quantidade significativa de refugiados, entre os quais se encontravam um número considerável de judeus. Apesar do número exacto de vidas salvas pela intercessão do cônsul português não ser claro, pois há quem refira 30 000, dos quais 10 000 seriam judeus, a sua acção em defesa da justiça e da humanidade, contrariando as ordens de Lisboa, valeu-lhe o título de "Justo entre as nações", atribuído na homenagem que lhe foi prestada, em 1966, pelo Memorial de Yad Vashem, o Memorial do Holocausto situado em Jerusalém.
11. "A Ética é estar à altura do que nos acontece", escreveu Gilles Deleuze, e conforme se pode ler enquanto se mergulha, erguidos na escada rolante, mais fundo rumo aos mares do desconhecido e à grande aventura humana.
12. Immanuel Kant, figura incontornável do pensamento moderno, foi o grande campeão da causa do Homem. A sua obra, nomeadamente a Paz Perpétua: Um Projecto Filosófico, foi uma das principais fontes inspiradoras do grande projecto mundial das Nações Unidas e da União Europeia, ou seja, a Volkerbund ou a Liga de Povos, que conduziria, no seu ideário, à paz mundial.
13. Aquiles Estaço foi um importante humanista português, tendo-se distinguido pela suas qualidades como filólogo, tradutor e teólogo, que nasceu na Vidigueira, no mesmo ano em que Vasco da Gama, Conde da Vidigueira, morre em Cochim. A sua obra tem sido celebrada em diversas universidades portuguesas e estrangeiras ao longo deste ano. Em Novembro haverá exposições e conferências na BNP, UC, UE e UL.
https://www.letras.ulisboa.pt/pt/agenda/comemoracoes-do-v-centenario-do-nascimento-de-aquiles-estaco-aquiles-estaco-um-humanista-portugues-na-europa-do-seculo-xvi-conferencias-e-exposicao
Bibliografia:
-Lx: 656.2/4/ROL, UM METRO E UMA CIDADE. MARIA FERNANDA ROLLO, LISBOA, 2000,
-Françoise Schein: artist of the Human Rights: https://www.francoiseschein.com/
-Rec. 36/1994, VIVA, 1 de Outubro de 1994, p. 6-7
-Rec. 620/ 2022, TimeOut, nº 127, 21/09/ 2022, pp. 1-2).
-PESSOA, Fernando. Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação. Lisboa: Ática, 1966, p. 94.
-https://www.letras.ulisboa.pt/pt/agenda/comemoracoes-do-v-centenario-do-nascimento-de-aquiles-estaco-aquiles-estaco-um-humanista-portugues-na-europa-do-seculo-xvi-conferencias-e-exposicao.