Gelatarias da Baixa e do Chiado

E se os mestres de gelataria pudessem retorquir a Voltaire (1694 -1778), a propósito do que este disse sobre a tentação que o gelado constituía - “O gelado é sofisticação. Que pena não ser proibido” - talvez optassem antes por lhe sugerir que provasse os muitos sabores deste imenso cardápio. E aí o filósofo do Iluminismo teria dois caminhos: ou rendia-se à tentação, provando os muitos sabores disponíveis nas gelatarias da Baixa e do Chiado, ou resistia-lhe, clamando pelo encerramento das mesmas… 

As 6 gelatarias distribuídas pela Baixa e pelo Chiado estão aptas a satisfazer o nosso desejo de alimento, frescura, prazer, bem-estar… que Laura Weiss (2011), no livro Ice-Cream: A Global History, soube sintetizar eximiamente. Afinal para além de ter identificado o duplo papel de nutrição, física e psicológica, dos gelados, relatou também a importância que estes assumem na memória de infância. Não obstante o contributo que os E.U.A. tiveram na massificação e divulgação do gelado, as suas origens remetem para a Europa, primeiro a Itália e depois a França e a Inglaterra. Estes países tiveram também papel de destaque na componente da criação de técnicas e utensílios destinados ao aperfeiçoamento ou conservação do produto. Weiss aponta ainda a faceta de ícone cultural do gelado, com presença na música, na pintura e na sétima arte. Mas quando se recuam páginas de história e se foca nos tempos em que o que dava nome ao gelado era a neve, entra, obrigatoriamente, em linha de conta o precioso contributo do imperador Nero (37-68 d.C.), pois a ele se deve a ideia de ter combinado a neve da montanha com a suculência da fruta. Quanto à junção do leite, óbvio agora aos nossos olhos, foi a partir dos relatos de Marco Polo (1254-1324) que os italianos tiveram a ideia de o introduzir na ”gelateria”, daí à presença nas mesas reais foi um ápice. Aliás, consta que no século XVI aquando da cerimónia de casamento de Catarina de Médicis com Henrique II foi servido aos convidados, a cada dia da boda, um gelado de sabor diferente. Pelo que a confirmar-se o mês inteiro de festa muitos foram os sabores que se deram a provar.

Parece certo que a história do Trabalho, tal como a própria História, é feita de evolução, afinal cada geração recebe os instrumentos de trabalho da geração precedente e, por norma, altera-os com vista à sua melhoria. É neste sentido que se quer destacar o século XX, porque foi, decididamente, o “motor” da expansão que o sector vivenciou, já que a garantia de conservação proporcionada pelo advento da refrigeração permitiu aos gelados ganhos de vária ordem. Ora, depois da sumária apresentação de alguns marcos da história da gelataria e de se intuir a longa escalada entre a “neve” e os gelados de hoje, inicia-se com aquela que reclama ser a primeira gelataria a chegar a solo lisboeta, primeiramente ainda na forma ambulante. Porque de início foi esta a solução que Giovanni de Luca, fundador da Veneziana e natural dos Alpes italianos, encontrou. O carrinho, hoje logótipo da casa, outrora foi o ganha-pão da família e a maneira como muitos alfacinhas conheceram o prazer de comer um gelado. A partir de 1933, pouco a pouco, a cidade tem vindo a conhecer novas gelatarias, não obstante estas terem modos de fabrico diferenciados - artesanal e industrial - estão igualmente empenhadas no mesmo propósito: o de contribuir para a felicidade de quem pisa a capital. Outra família que colheu ensinamentos em Itália e que optou por os trazer para solo português foi a Santini; em 1949 Attílio Santini elegeu a praia do Tamariz para se instalar e só depois da maturidade proporcionada pela “linha” é que decidiu presentear Lisboa com a Santini Chiado. Manuela Carabina foi buscar aos vizinhos italianos mais que a mestria de fazer gelados, trouxe também a própria génese (fragola = morango) da Fragoleto. No Pátio da Galé, ao Terreiro do Paço, a marca italiana Nosolo também marca presença no Paço d`Água. Decididamente Itália não abre mão do seu protagonismo nesta área, e a quantidade de feiras e eventos que gravitam em torno do sector é prova disso, destaque para Rimini, com a sua feira anual, que se assume como centro internacional do “gelato artigianale”. Já a Finzi foi até à América Latina, mais especificamente até Buenos Aires para colher os ensinamentos da gelataria argentina.

E se estas são as 6 gelatarias da actual geração - com cerca de quarenta empregados - outras existiram antes: o Martinho da Arcada no Terreiro do Paço - que fica indelevelmente associado ao gelo e à neve, visto que chegou a merecer as designações de “Café do Gelo” e “Casa da Neve”, respectivamente, justificação que parece ganhar evidência pelo facto deste ter sido o entreposto comercial do gelo fornecido pela Real Fábrica do Gelo na Serra de Montejunto - seguida depois por outras casas lisboetas como a Pastelaria Pomona. Interessante, também, será percorrer com Melo, Guapo e Martins em “Os Neveiros da Serra de Montejunto”, na obra O Trabalho e as Tradições Religiosas no Distrito de Lisboa (1991), a jornada que estes “blocos de gelo envolvidos em palha, feno e serapilheira” percorriam até chegar à capital, transportados primeiro por “carros de bois” e por fim em “barcos à vela”. Mais tarde, Paulo Ferreira da Costa em Montejunto: imaginários e celebrações de uma Serra (1999) também discorre sobre a eventual relação entre a "Serra da Neve" e a Fábrica do Gelo. Mas antes, conforme dá conta Fernando Castelo-Branco em Lisboa Seiscentista, a necessidade de neve já se tinha imposto na capital e em 1619 já se via aparecer neve em Lisboa. A visita de Filipe II à cidade mereceu à Câmara o cumprimento da recomendação que havera recebido - o de ter neve enquanto o soberano por cá se demorasse  - tendo para isso formalizado a assinatura de um contrato de fornecimento com o neveiro Paulo Domingues, "segundo o qual se obrigava a trazer para Lisboa 24 arrobas de neve; para a sua venda cedeu a Câmara duas casas: uma junto das portas de Santa Catarina e outra no Terreiro do Paço."     

Com efeito, consta que  foram os italianos que no século XVI introduziram em Lisboa a designação de "gelato", hoje reservada ao que leva leite do dia, e sberbeth, “neve doce” em árabe, de que derivou “sorvete”, à base de sumo ou polpa de fruta a que nalguns casos se pode acrescentar água. Quanto ao sorvete, em 1699 já Domingues Rodrigues, no livro Arte de Cozinha, dava a saber a receita. Pois para quem quiser experimentar, somos, então, de a divulgar: "num tacho sete arrateis de assucar de pedra, com o sumo de seis limões, bate-se muito bem até que fique em bom ponto; botem-lhe um cruzado de pós de aljofar, um cruzado de pós de coral, um cruzado de pós de ouro, seis tostões de almiscar, e dose tostões de âmbar, e de pedra basar o quiserem" (p. 151), depois é só bater... e mais tarde comer.   

Presentemente a indústria da gelataria - distinta do fabrico artesanal, com os produtos naturais - usa também essências, preparados em pó, polpas, corantes, conservantes e espessantes. Quanto aos sabores mais presentes e procurados são o morango, o chocolate, a baunilha e a nata - todo o ano e em todas as gelatarias. Para além destes, cada mestre “gelateiro” inventa o seu sabor - chá, arroz-doce, tomate, queijo, maçã assada - chegando alguns a apresentar 100, 120, 140 sabores diferentes, em busca de novidade ou respondendo aos exotismos que chegam de todo o mundo. Os “toppings” - os acrescentos de frutos secos moídos, chocolate, morango, caramelo ou smarties em cima do gelado - complementam a delicia! Mas a primazia do acessório vai ainda para a bolacha de baunilha, em cone, que é o remate guloso depois de tudo se ter derretido na boca… 

Aqui e ali - caixas frigoríficas em cafés, algum balcão de gelados numa ou noutra pastelaria, quiosques em centros comerciais como o da Olá nos Armazéns do Chiado - são correntes em Lisboa. De recordar a loja da Ben & Jerry na Rua da Misericórdia que funcionou entre 2006 e meados de 2011. Quanto à relação do lisboeta com o gelado apesar de se reconhecer cada vez mais apreciador, ainda assim a  procura não deixa de ser marcada pelas estações do ano. O que implica que o ciclo Primavera/Verão tenha uma procura mais acentuada que o Outono/Inverno, embora estas casas estejam a tentar contrariar essa “curva de sazonalidade” propondo sabores "mais quentes" para essa época. Sazonalidade que os vendedores ambulantes também cumprem, vendendo gelados depois da fruta primaveril e antes da outonal castanha assada.

 Judite Lourenço Reis e Constança de Castro

Levantamento das Gelatarias da Baixa e do Chiado (descarregar PDF)

 

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