Uma nova cidade: o acampamento castelhano do cerco de Lisboa de 1384

Cerco de Lisboa de 1384 (Jean Froissart, Chroniques, Paris, Bibliotheque Nacional de France).

Foi uma verdadeira cidade, aquela que, em Maio de 1384, surgiu nas imediações do Mosteiro de Santos, a poucas centenas de metros de Lisboa. Apesar da rapidez com que foi erguida, encontrava-se devidamente organizada em arruamentos, dispunha de uma zona própria para os animais, estava bem abastecida de géneros, contava com diversos tipos de artesãos e comerciantes e era habitada por perto de 20.000 indivíduos, entre homens e mulheres, todos eles instalados numa área que se estendia pelo vale de Alcântara até Campolide. Mas apesar de todas estas características e dimensão, esta não era uma cidade propriamente dita, mas sim o acampamento militar das forças de Juan I de Castela que, para fazer valer as pretensões da sua mulher D. Beatriz ao trono português, se preparava para cercar a cidade de Lisboa.

No dia 30 de Maio de 1384 a hoste de D. Juan I, que tinha entrado em território português em Dezembro de 1383, aproxima-se finalmente de Lisboa e instala o seu arraial junto ao Tejo, isto é, numa zona que lhe permitia manter o contacto com a frota castelhana – mais de 70 embarcações – que cercava a cidade pelo lado do rio. Sob o seu comando, o rei tinha um total de perto de 12.000 efectivos, entre os quais se encontrava um grande número de portugueses e diversos grupos de mercenários franceses e aos quais se somavam as tripulações e as guarnições da frota ancorada no Tejo, o que deve ter totalizado perto de 20.000 indivíduos, entre combatentes e auxiliares.

Para instalar esta multidão foi escolhida uma zona próxima do mosteiro de Santos, localizado a poucas centenas de metros a leste de Lisboa, uma decisão que certamente teve também em conta a proximidade do rio, por onde chegavam regularmente abastecimentos e reforços. Porém, a instalação de um acampamento deste tipo não se fazia de modo aleatório, mas sim segundo normas que, sempre que possível, deviam ser estritamente cumpridas.

O arraial ficou, então, organizado da seguinte forma: para o rei e para a rainha D. Beatriz foi propositadamente construída uma “alta casa sobradada, feita sobre quatro traves grossas, çercada de parede de pedra seca”, como nos conta Fernão Lopes, a principal fonte para o conhecimento deste episódio. Em redor desta edificação, erguida no centro do acampamento, distribuíam-se, em grande número, as tendas dos principais senhores que integravam a hoste e nas quais seria também possível encontrar um certo grau de conforto. As restantes forças encontravam-se acampadas entre Alcântara e Campolide, em tendas de menores dimensões e partilhadas por mais que um combatente. E como sublinha aquele cronista, encontravam-se distribuídas por “gramdes e bem hordenadas rruas; e todas em çima com bamdeiras e pemdoões de desvairadas armas e sinaaes” que identificavam os contingentes a que pertenciam. E é muito possível que, com o arrastar do cerco – que se prolongou até Setembro – algumas destas tendas tenham sido substituídas por habitações improvisadas, isto é, por algumas “barracas”.

Numa zona distinta encontravam-se os currais das montadas dos cavaleiros, dos animais de carga e de tiro e das rezes destinadas ao abate. A localização dos currais num local afastado – tanto quanto possível – das tendas dos combatentes era essencial, sobretudo, para evitar a propagação de doenças, pois uma hoste composta por 25 000 efectivos e por cerca de 2 500 cavalos produzia aproximadamente 4 800 000 litros de urina e 4 000 000 de quilos de fezes em cada dois meses, pelo que era fundamental instalar o gado numa zona afastada do acampamento principal da hoste.

Num outro local diferenciado, mas relativamente próximo das tendas de campanha, encontrava-se um grande número de oficinas de mesteirais, de tendas de mercadores dos mais diversos produtos, de vendedores de tecidos, de armeiros e de cambistas. O arraial era também marcado pela presença de tendas de físicos, de boticários e de cirurgiões, responsáveis pela saúde da hoste e fundamentais junto de qualquer exército em campanha que, a todo o momento, podia entrar em combate. A hoste contava ainda com os sempre úteis alveitares, especialistas no tratamento das montadas e dos animais de carga e de tiro que acompanhavam a hoste. Aparentemente, a única carência do arraial seria, como adianta Fernão Lopes, o reduzido número de sapateiros. Nesta zona do acampamento era ainda possível encontrar uma rua de prostitutas “tamanha como se costuma nas gramdes çidades”. Para assegurar a ordem, a segurança e a justiça nesta autêntica cidade improvisada foi implementado um sistema de policiamento interno, ao que parece, bastante eficaz. Quanto à segurança externa, as medidas não parecem ter sido propriamente apertadas, pois como todas as praças-fortes em redor da capital tinham voz pelo rei de Castela, a única ameaça podia vir de Lisboa. Por isso, o arraial castelhano estava apenas protegido por uma paliçada erguida do lado leste.

Mas tal como noutros acampamentos, o maior problema era a falta de condições sanitárias. Este era, aliás, um problema que se verificava em todas as cidades medievais, onde também não existiam sistemas eficazes de remoção de lixos. Para além dos odores e das bactérias libertadas para o ar pelas imundices, sobretudo nas alturas de maior calor – e recorde-se que o cerco de 1384 decorreu precisamente durante a Primavera e o Verão –, todos os dejectos (humanos e animais) penetravam também, e de forma rápida, nos lençóis freáticos e, automaticamente, na água que era consumida, provocando quase sempre graves distúrbios gastro-intestinais, desinteria e febres que podiam mesmo conduzir à morte. A tudo isso, acrescentavam-se ainda outros tipos de lixos, como os restos provenientes das cozinhas e do desmancho das rezes consumidas nos arraiais, a palha proveniente dos estábulos, bem como os resíduos dos hospitais de campanha, muitos dos quais ensopados em sangue. E foi precisamente a conjugação de todos esses factores a causa do surto de disenteria – a tal “peste” de que nos falam as crónicas – que, depois de fazer um grande número de vítimas entre as forças sitiadoras, acabou mesmo por obrigar Juan I a levantar o cerco.

 Miguel Gomes Martins

FONTES:

Fernão Lopes, Chronica del Rei Dom João I da Boa Memória. Parte Primeira, reprodução facsimilada da Edição do Arquivo Histórico Português, preparada por Anselmo Braamcamp Freire, com prefácio de Luís Filipe Lindley Cintra, Lisboa, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1972.

Pero López de Ayala, “Crónica del Rey Don Juan, Primero de Castilla e de León”, in Cronicas, ed. de José-Luis Martín, Barcelona, Planeta, 1991, pp. 509-697.

BIBLIOGRAFIA:

João Gouveia Monteiro, A Guerra em Portugal nos Finais da Idade Média, Lisboa, Notícias, 1998.

João Gouveia Monteiro, “De Afonso IV (1325) à Batalha de Alfarrobeira (1449) - Os desafios da maturidade”, in Nova História Militar de Portugal (Dir. de Manuel Themudo Barata e Nuno Severiano Teixeira), Vol. 1 (Coord. de José Mattoso), Lisboa, Círculo de Leitores, 2003, pp. 163-287.

Miguel Gomes Martins, Lisboa e a Guerra. 1367-1411, Lisboa, Livros Horizonte, 2001.

Miguel Gomes Martins, A Vitória do Quarto Cavaleiro. O Cerco de Lisboa de 1384, Lisboa, Prefácio, 2006.

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