As campanhas de obras na muralha de Lisboa durante a segunda metade do século XIV

Berthold Furtmeyr, Deutsche Bibel AT, Bd. 1 (Gen. - Reg., Psalter): Buchmalerei der Renaissance BSB Cgm 502, Regensburg, um 1463, fl. 155.

Erguida no século III-IV e reformada em 985 durante o governo de Almansor, a muralha que protegia a cidade de Lisboa deve ter sido objecto de algumas obras de melhoramento, manutenção e restauro ao longo dos séculos XII e XIII. Recorde-se, por um lado, as reparações efectuadas no local onde, em 1147, os cruzados alemães e flamengos abriram uma brecha e, por outro, a construção, por iniciativa de Afonso III, da barbacã da Porta do Mar. Mas quaisquer que tenham sido os outros trabalhos realizados durante essas centúrias, não restam dúvidas de que nenhum deles constituiu uma intervenção de fundo e alargada a todo o perímetro amuralhado, pelo que, chegados a inícios de Trezentos, muitos sectores da chamada Cerca Moura continuavam necessitados de reparação. O desmoronamento, em 1296, de um troço da cerca, bem como as referências, em 1306, ao “muro quebrado”, apontam precisamente nesse sentido.

Assim, ao longo dos séculos XIII e XIV, aquela que permanecia como a principal estrutura de defesa da capital foi, gradualmente, continuando a sofrer o desgaste natural da passagem do tempo, mas também da acção dos homens, que muitas vezes a utilizaram como uma autêntica “pedreira” e que nela também rasgaram – quase sempre à revelia das autoridades da cidade – novas portas e postigos. Também o facto de a obrigação de reparar os muros recair sobre os proprietários dos edifícios adossados à muralha, terá certamente levado a que, muitas vezes, o estrito cumprimento desse dever tenha sido esquecido, o que contribuiu ainda mais para a progressiva e rápida deterioração dos muros e das torres.

É em virtude deste quadro – que em última análise poderia pôr em causa a segurança da cidade e dos seus habitantes – que a cidade empreendeu, em inícios da década de 1350, uma vasta campanha de obras na cerca lisboeta. Num documento de Junho de 1355 afirmava-se que “este ano extremadamente, receberam muitos encarregos e muy custosos por razão dos muros da cidade que adubaram e adubavam e refaziam, e outrossi das portas que fizeram e renovaram”. As despesas com estas obras foram de tal forma avultadas, que exigiram a aprovação, em reunião magna do concelho realizada no adro da Sé de Lisboa, da decisão de lançar sisa sobre os vinhos comercializados na cidade, a forma encontrada para fazer face aos gastos com esses trabalhos. Ainda que as fontes disponíveis nada adiantem a respeito das intervenções que, por essa altura, eram levadas a cabo por iniciativa concelhia, é natural que tivessem como objectivo o reforço da muralha e a reparação dos efeitos mais visíveis da passagem dos anos, devolvendo a essa estrutura o papel que, gradualmente tinha vindo a perder.

Contudo, todas essas obras acabaram por nada servir em resultado dos sismos que, nos anos seguintes abalaram toda a região sul do reino – em particular a capital –, que mais fortemente ajudaram à degradação da cerca. Com efeito, os abalos de 1355 e 1357, mas acima de tudo o do dia de S. Bartolomeu (24 de Agosto) de 1356, foram responsáveis pelo colapso de algumas torres e lanços da muralha, nomeadamente em algumas das zonas que se encontravam, então, a ser intervencionadas. A resposta da Coroa não se fez esperar, lançando um pedido de âmbito “nacional” destinado a recolher os montantes necessários à reparação dos danos que, em consequência daqueles abalos, “ao reino recreceram em castelos e em fortalezas”. Apesar de na capital, Afonso IV contar arrecadar perto de 60.000 libras, o concelho de Lisboa conseguiu negociar com o rei e, deste modo, reduzir a sua contribuição para apenas metade, isto é, para 30 000 libras.

A documentação disponível, para além de nada registar a respeito da extensão dos estragos verificados, também não permite descortinar em que moldes se processou a reconstrução das torres e muralhas destruídas pelos sismos desses anos. Contudo, ao que nos é dado perceber, ter-se-ão arrastado durante alguns anos, pois em Maio de 1361 D. Pedro I autorizou o concelho de Lisboa a expropriar diversas pedreiras localizadas nas imediações da cidade, de modo a que não faltasse matéria-prima para os trabalhos que então decorriam e, assim, para que estes não se atrasassem ainda mais. Porém, existia um problema bastante mais profundo que a mera escassez de pedra. Com efeito, porque não era apenas em Lisboa que decorriam obras, mas sim num grande número de fortalezas, em particular a Sul do Tejo – a zona mais afectada pelo terramoto de 1356 –, a Coroa debatia-se com sérias dificuldades para fazer face a todas as despesas inerentes à recuperação de um elevado número de castelos, cidades e vilas. Por isso, em Julho desse mesmo ano de 1361, o rei enviou ao Papa uma súplica através da qual lhe solicitava a concessão das décimas dos rendimentos eclesiásticos do reino, com vista à reparação dos danos provocados pelos terramotos dos anos anteriores, pedido esse que Inocêncio VI recusou.

Porém, independentemente do que foi, ou não, reparado e reconstruído durante essas campanhas de 1355 a 1361, no ano de 1366 as muralhas de Lisboa voltavam a ser alvo de novos melhoramentos, tudo o indica, mais abrangentes. Mais difícil é perceber se se tratava das mesmas obras, que continuavam por concluir, ou se estamos perante uma nova campanha motivada pela necessidade de reparar os danos provocados por um novo sismo ocorrido em Junho desse mesmo ano e que pode perfeitamente ter arruinado parte das obras efectuadas nos anos anteriores. Sabe-se apenas que estando o concelho devedor de uma elevada quantia de perto de 126.000 libras ao rei, este decidiu perdoar a dívida com a condição de esse montante vir a ser integralmente aplicado pelo município – e para isso D. Pedro I exigia o registo detalhado de todas as despesas em livros destinados exclusivamente para esse efeito – no “reparamento do muro e torres de arredor dessa cidade”, mas também da barbacã, muito provavelmente aquela que, em finais da década de 1250 / inícios da década de 1260, fora erguida por iniciativa de Afonso III no lanço ocidental da muralha e, ao que parece, no lanço oriental.

Não é possível perceber qual a dimensão das obras, o que foi feito ou o que ficou por fazer. Todavia, muito deve ter permanecido sem grande reparações, pois entre 1370 e 1373 voltamos a ter notícia de uma nova campanha de obras de restauro, as quais incidiram no lanço compreendido entre a Porta do Ferro e a Porta da Alfofa, mas também na barbacã que protegia esse sector da muralha e que, apesar das intervenções de 1366 – que podem mesmo não ter chegado a ser concluídas –, estariam certamente carecidas de algumas reparações e melhoramentos. Tratou-se de mais uma obra marcada pela lentidão, provocada de novo por dificuldades financeiras, as mesmas que impediram D. Fernando de realizar o projecto, esboçado em 1369, de dotar a cidade de uma nova cintura amuralhada.

Ainda que marcadas pela lentidão, pelos problemas com o seu financiamento e com a destruição provocadas pelos sismos que marcaram as décadas de 1350 e 1360, é à luz destas campanhas de obras levadas a cabo ao longo dos reinados de Afonso IV, D. Pedro I e D. Fernando que se consegue compreender a resistência demonstrada pela velha muralha lisboeta face ao cerco imposto à cidade, em Fevereiro-Março de 1373, pela hoste de Enrique II de Castela.

 Miguel Gomes Martins

BIBLIOGRAFIA:

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FONTES:
Arquivo Municipal de Lisboa
Livro I de Místicos
Livro I de Serviços a El Rei
Livro I de Quitações e Desistências

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Monumenta Portugaliae Vaticana, Vol. I, ed. de António Domingues de Sousa Costa, Porto / Roma, Livraria Editorial Franciscana, 1968.

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