A Torre Albarrã do Castelo de Lisboa

Lanço sul do castelo e “Torre de Ulisses”, a antiga torre albarrã. Foto gentilmente cedida pela EGEAC/Castelo de S. Jorge (©Sergiy Scheblykin 2022/EGEAC/Castelo de S. Jorge)
Antiga torre albarrã, onde se observa parte do arco do passadiço que ligava a torre à muralha, junto da porta principal do castelo (c. 1900, Foto de Alberto Carlos Lima, Arquivo Municipal de Lisboa, PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/LIM/001464)

Praticamente desaparecido, escondido por debaixo e por detrás dos inúmeros edifícios e equipamentos – casas de habitação, aquartelamentos, prisões, armazéns e arsenais – que, sobretudo ao longo das centúrias de Setecentos e de Oitocentos, aí foram surgindo no âmbito da utilização militar desse espaço e redescoberto depois das obras conduzidas pela Direcção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais (DGEMN) em 1938-1939, o castelo de Lisboa revela-se hoje como uma estrutura onde é possível descortinar elementos de diversas épocas, os quais foram sendo introduzidos no âmbito das muitas campanhas de obras destinadas a melhorar a operacionalidade da fortaleza e que, em alguns casos, vieram alterar algumas das suas características originais. E foi precisamente isso que sucedeu com a torre albarrã, mencionada nas fontes dos séculos XIII e XIV e hoje praticamente impossível de distinguir.

As torres albarrãs são torreões separados das muralhas, mas às quais se ligam, através de uma ponte ou de um passadiço de pedra. Trata-se de uma solução arquitectónica, ao que parece, desenvolvida pelos almóadas com o intuito de multiplicar os ângulos de tiro e que, por se tratar de um recurso de grande eficácia na defesa das fortalezas, passou também a ser utilizado nas que, depois, vieram a ser erguidas pelos cristãos, designadamente naquele que conhecemos como Castelo de S. Jorge.

Uma das referências mais antigas ao castelo de Lisboa remonta ao reinado de D. Dinis (1279-1325), monarca que no seu primeiro testamento, de Abril de 1299, refere que uma boa parte do tesouro régio, nomeadamente numerário, se encontrava guardado numa das torres do castelo lisboeta, a qual, no ano seguinte, era já conhecida como “torre do tesouro do castelo de Lisboa”. E como o próprio D. Dinis refere no seu segundo testamento, datado de Junho de 1322 e no terceiro, de Dezembro de 1324, tratava-se de uma torre-albarrã. Ainda durante o reinado de D. Pedro (1357-1367), o tesouro régio continuava a ser guardado nesta torre, então conhecida como Torre do Haver, conforme o testemunho de Fernão Lopes, autor que afirma mesmo, talvez com algum exagero, que a torre em questão havia sido erguida propositadamente para esse fim. E é este mesmo cronista que deslinda a sua localização, afirmando que se implantava junto da porta do castelo, ou seja, aproximadamente a meio do lanço sul.

Contudo, como se pode observar hoje em dia, o castelo de Lisboa não apresenta já nenhuma torre albarrã, pois todas elas são torres adossadas às muralhas. As dúvidas são, portanto, legítimas. O que sucedeu com a torre albarrã a que aludem D. Dinis e Fernão Lopes? Teria sido demolida ou alterada? E quando?

Um olhar mais atento ao lanço meridional do castelo permite-nos descortinar, precisamente junto da porta principal, rasgada nesse mesmo sector, como registara Fernão Lopes, a presença de uma torre que, apesar de actualmente se encontrar adossada à muralha, apresenta ainda alguns sinais, nomeadamente parte do arco do passadiço que a ligava aos muros, que sugerem que anteriormente teria sido uma torre albarrã. Ora, não se conhecendo nenhuma outra torre com estas características no castelo de Lisboa, é de admitir que seria esta, actualmente designada como Torre de Ulisses, a torre do tesouro, ou “do Haver”, isto é, a torre albarrã.

Mais difícil é determinar quando foi essa estrutura transformada de modo a ficar adossada e não separada da muralha? As imagens disponíveis asseguram que se trata de uma alteração anterior a inícios do século XX, pelo que não pode ser atribuída às acima referidas obras empreendidas pela DGEMN. As pistas para deslindarmos o problema são, mais uma vez, fornecidas por Fernão Lopes que, ao referir-se à utilização dessa torre durante o reinado de D. Pedro I, sublinha o facto de não estar ainda concluída. Naturalmente não se trata da sua construção de raiz, mas muito provavelmente da sua reconstrução, um processo que a converteu numa torre adossada. Igualmente difícil é perceber o motivo dessas obras. Tratar-se-ia de uma simples alteração destinada a ampliar o espaço disponível no seu interior? É possível. No entanto, se nos recordarmos que o grande terramoto de 24 de Agosto de 1356 provocou o derrube da torre do canto sudoeste do castelo e que a sua reconstrução só foi concluída no reinado de D. Pedro I – como indica um grafito descoberto pelo arqueólogo Carlos Fabião e estudado por Bernardo Sá Nogueira e Maria do Rosário Morujão –, é lícito admitir que também a torre albarrã do castelo tenha ficado danificada, ou mesmo colapsado, na sequência desse sismo, tendo sido reconstruída pela mesma altura, porém, com uma configuração diferente da original, ou seja, perdendo o seu atributo de albarrã.

Ainda que as fontes não permitam, para já, confirmar, ou infirmar esta ideia, que não passa de uma hipótese, parece-nos ser esta a explicação mais plausível para compreender quando e qual o motivo que levaram a que a torre albarrã do castelo de Lisboa tenha deixado de existir como tal, para se converter numa torre adossada à muralha, a mesma que é hoje designada como Torre de Ulisses.

Miguel Gomes Martins

FONTES INÉDITAS

ANTT, Mosteiro de Almoster, M 2, doc. 28, de 1300, Janeiro, 7.


FONTES PUBLICADAS

BRANDÃO, Frei Francisco, Monarquia Lusitana, Quinta Parte, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1976, pp. 329-331.

LOPES, Fernão, Crónica de D. Pedro I, ed. crítica, tradução e glossário por Giuliano Macchi, Roma, Edizioni dell´Ateneo, 1966, Cap. XII, pp. 135-136.

LOPES, Fernão, Crónica de D. Fernando, ed. crítica por Giuliano Macchi, Lisboa, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1975, Prólogo, p. 5.

SOUSA, António Caetano de, Provas da História Genealógica da Casa Real Portuguesa, Tomo 1, Lisboa, Oficina Sylvana, 1739, pp. 99-105; e Frei Francisco Brandão, Monarquia Lusitana, Sexta Parte, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1980, pp. 582-589.


BIBLIOGRAFIA

MONTEIRO, João Gouveia, Os Castelos Portugueses dos Finais da Idade Média. Presença, Perfil, Conservação, Vigilância e Comando, Coimbra, Colibri / Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 1999.

SILVA, A. Vieira da, “O castelo de Lisboa. Trabalhos de restauração realizados em 1939-40”, Dispersos, Vol. 2, pp. 377-392.

SILVA, A. Vieira da, O Castelo de S. Jorge, Lisboa, Empresa Nacional de Publicidade, 1937.

SILVA, Libório Manuel / MARTINS, Miguel Gomes, Castelos Maravilhas de Portugal, Vila Nova de Famalicão, Centro Atlântico, pp. 130-137.

 

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