A Porta do Ferro

Georg Braun e Frans Hogenberg, “Olissipo quae nunc Lisboa…”, Civitates orbis terrarum (pub. em Colónia, c. 1598 com base em desenho de c. 1565)
Augusto Vieira da Silva, A Cêrca Moura de Lisboa. Estudo Histórico Descritivo, Lisboa, Câmara Municipal de Lisboa, 1987 (3ª edição), Estampa III.

Conhecida até 1147 como Bab al-Gharb, ou seja, Porta do Ocidente, era uma das mais importantes da muralha de Lisboa e, sem dúvida, a mais movimentada do seu lanço oeste. Era, em grande medida, o resultado de ser a porta que comunicava directamente, por um lado, com o arrabalde ocidental da cidade e com as vias que levavam, entre outras, às povoações de Sintra, Mafra ou Cascais e, por outro, com os locais de maior importância da almedina, designadamente o suq, isto é, o grande mercado e a mesquita aljama. Cruzando essa porta e atravessando a cidade, acedia-se ainda à Porta de Alfama, a principal do sector leste da muralha e que dava acesso ao arrabalde oriental e à via que levava a Santarém.

Ainda que sujeita a obras de melhoramentos e de adaptação e conservação, sobretudo durante o período da presença muçulmana, é possível que, dada a circunstância de a muralha de Lisboa ter uma origem romana, a Porta do Ocidente corresponda a uma das entradas/saídas originais desse perímetro defensivo. Contudo, não tendo sido encontrados, nessa zona, quaisquer vestígios da muralha romana, esta é uma hipótese que, para já, carece de confirmação.

Tratando-se da mais importante e da mais movimentada de al-Ushbuna, não admira que fosse também a mais imponente de todas, razão por que era também conhecida como Bab al-Kabir, ou seja, Porta Grande, característica que a converteu em objecto da admiração dos geógrafos muçulmanos que escreveram sobre Lisboa. Al-Bakri, em meados do século XII, descrevia-a como estando “sobrepujada por arcadas sobre colunas de mármore fixas em pedras (também) de mármore”, provavelmente pedra trabalhada proveniente de algum equipamento de origem romana, eventualmente do fórum, como propõe Vieira da Silva. Também Abd al-Mumin, já no século XIII, a retratou da mesma forma, mas acrescentando que as arcadas, referidas por al-Bakri, eram duplas e que esta era a maior das portas da cidade. Para reforçar a sua imponência, mas, acima de tudo, para lhe conferir uma maior resistência, as suas portadas de madeira encontravam-se revestidas por chapas de ferro, uma solução que se manteve, pelo menos, até 1147. Foi justamente esta característica que levou o cruzado Raul (ou Roberto), em carta enviada a Osberto de Bawdsey relatando o sucesso do cerco imposto à cidade entre Julho e Outubro desse ano, a designá-la, por diversas ocasiões, como “porta férrea”, ou “porta de ferro” (portam ferream), um nome que se fixou e que se manteve ao longo de toda a Idade Média.

Não havendo qualquer notícia de obras neste local depois da conquista, é provável que, em 1147, fosse já constituída por uma porta que dava acesso, primeiro, a um pátio coberto e, de seguida, a uma outra porta, uma solução arquitectónica de natureza claramente defensiva e que encontramos em muitas outras cidades do mundo muçulmano, designadamente no Norte de África. É isso que sugere um documento – já do século XV – em que se alude a umas casas entre “ambas as portas do ferro”, o que aponta para a possibilidade de se tratar não de uma mera abertura rasgada na muralha, mas sim de uma espécie de torre-porta, de planta rectangular e pouco mais alta que a muralha, aliás, como é apresentada na gravura de Jorge Bráunio, de meados do século XVI. Nesta imagem é ainda possível perceber que o eirado desta estrutura se encontrava coberto por um telhado de duas águas, sob o qual, em inícios da centúria de Quatrocentos, foi fundada a ermida ou capela de Nossa Senhora da Consolação, que inicialmente recebeu a invocação de Santa Maria (da Porta do Ferro). Em 1551, Cristóvão Rodrigues de Oliveira assinalava precisamente que a referida capela se situava “sobre um arco duma porta do muro antigo, que se chama a Porta do Ferro”. Segundo Vieira da Silva, com base no depoimento de frei Apolinário da Conceição, era nesse local que se rezava missa pelos condenados que por ai passavam ao serem conduzidos desde a prisão do Limoeiro até ao local onde eram enforcados.

De forma a melhorar a circulação na via que, passando junto ao paço do concelho e à igreja de Santo António, desembocava no adro da Sé – a Rua Direita da Porta do Ferro –, em Janeiro de 1502 D. Manuel determinou um conjunto de medidas que contemplavam, entre outras, a retirada das portadas de madeira revestidas a ferro e, muito provavelmente o alargamento dos arcos da Porta do Ferro que, assim, passou a ser conhecida como Arco de Nossa Senhora da Consolação. Esta configuração manteve-se até Novembro de 1755, altura em que, em virtude do grande sismo que abalou a cidade, quer a torre, quer a capela situada no seu topo, ruíram quase por completo. O que delas restava veio a ser demolido em 1782 no contexto das obras de reconstrução de Lisboa.

Miguel Gomes Martins

BIBLIOGRAFIA

MARTINS, Miguel Gomes
2017 – 1147. A Conquista de Lisboa na Rota da Segunda Cruzada, Lisboa, A Esfera dos Livros

SILVA, Augusto Vieira da
1987 – A Cêrca Moura de Lisboa. Estudo Histórico Descritivo, Lisboa, Câmara Municipal de Lisboa (3ª edição)

SILVA, Manuel Fialho
2022 – Mutação Urbana na Lisboa Medieval. Das Taifas a D. Dinis. Centro de História da Universidade de Lisboa.

REIS, António
2001 – “Lisboa e o seu termo segundo os geógrafos árabes”, Arqueologia Medieval, nº 7, pp. 37-72.

FONTES

Arquivo Municipal de Lisboa – Livro I de D. Manuel

Conquista de Lisboa aos Mouros (A). Relato de um Cruzado, ed. de Aires Augusto do Nascimento, Lisboa, Vega, 2001

OLIVEIRA, Cristóvão Rodrigues de, Lisboa em 1551. Sumário, Lisboa, Livros Horizonte, 1987, p. 52.

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