Lisboa e o primeiro “feito de armas” de Nuno Álvares Pereira

Estátua equestre de Nuno Álvares Pereira junto ao Mosteiro da Batalha, da autoria de Leopoldo de Almeida (foto de Manuel V. Botelho)

Nascido em Junho de 1360, Nuno Álvares Pereira era filho ilegítimo de Álvaro Gonçalves Pereira, Prior do Hospital, e de Iria Gonçalves do Carvalhal. Legitimado por D. Pedro I logo no ano seguinte, na mesma altura que os seus irmãos Fernão e Lopo, Nuno Álvares passou boa parte da sua infância junto do pai, entre os castelos do Crato e da Amieira e, por isso, no ambiente profundamente militarizado daquela ordem militar, onde certamente recebeu os seus primeiros ensinamentos marciais, entretanto aperfeiçoados pelo seu tio Martim Gonçalves do Carvalhal. Nesses meios terá certamente ouvido inúmeros relatos de campanhas, batalhas e cercos, que muitas vezes serviam de mote para o debate de assuntos relacionados com táctica e estratégia militar. De tudo isso Nuno Álvares seria um ouvinte atento, imaginando-se decerto na pele desses guerreiros e sonhando poder vir, um dia, a protagonizar o mesmo tipo de façanhas. A oportunidade surgiu com a eclosão, em 1381, da Terceira Guerra Fernandina.

Foi no Verão desse ano, pouco agradado com a forma como as forças dos fronteiros destacados para a defesa do Alentejo reagiam às incursões lançadas pelos castelhanos, que Nuno Álvares Pereira decidiu enviar para Badajoz uma carta de desafio ao filho do Mestre de Santiago, Juan Osores – fronteiro nessa cidade –, propondo-lhe um duelo até à morte em que cada um se encontraria acompanhado por nove cavaleiros, um repto que foi prontamente aceite pelo castelhano. Contudo, de alguma forma as notícias do plano de Nuno Álvares chegaram aos ouvidos de D. Fernando, que proibiu terminantemente o duelo. O jovem Nuno via, assim, adiada a sua oportunidade de se estrear em combate.

Foi já na Primavera de 1382 uma frota de 87 velas, entre naus e barcas armadas nos portos do Golfo da Biscaia fez a sua entrada no Tejo, a partir de onde, perante a inacção do fronteiro Gonçalo Mendes de Vasconcelos, que o rei tinha deixado em Lisboa quando partiu para o Alentejo, lançou a devastação na região em torno cidade e em várias outras localidades ao longo de ambas as margens do Tejo, como Xabregas, Frielas, Loures e mesmo em diversos locais do Ribatejo e da Península de Setúbal.

Descontente com a falta de reação por parte do fronteiro em Lisboa, D. Fernando substituiu-o por Pedro Álvares Pereira – até aí fronteiro em Portalegre –, que liderava a ordem desde a morte de Álvaro Gonçalves Pereira, ocorrida em Agosto ou Setembro de 1380. Integrado nas 200 lanças que acompanhavam o prior nesta nova missão encontrava-se o seu irmão Nuno Álvares.

Uma das primeiras medidas implementadas pelo prior do Hospital depois de assumir as suas novas funções consistiu na instalação de atalaias ao longo da faixa ribeirinha da cidade. Pretendia-se, com este sistema, vigiar as movimentações dos navios inimigos e detectar atempadamente qualquer batel que fosse lançado na direcção da margem norte do Tejo, de modo a que pudesse ser imediatamente enviado um destacamento de cavalaria ao seu encontro e, assim, impedir o desembarque ou, quando não o conseguissem fazer, cortar a retirada às forças inimigas. E foi precisamente uma manobra desse tipo que Nuno Álvares Pereira se preparou para levar a cabo.

Assim, envolto no mais completo secretismo e sem o conhecimento dos irmãos, começou a planear um ataque contra os biscaínhos. Para contornarem o sistema de vigilância implementado pelo fronteiro, estes passaram a desembarcar em zonas mais afastadas da cidade, nomeadamente nas imediações de Alcântara, a partir de onde lançavam, sem qualquer oposição, incursões contra as povoações e os campos agrícolas da região. Era precisamente essa confiança que o jovem Nuno Álvares pretendia explorar, de modo a infligir-lhes uma derrota através da qual pretendia demonstrar o seu valor em combate.

Para concretizar o plano contou com a colaboração do cunhado, Pedro Afonso do Casal – casado com a sua irmã Inês –, e de 24 outros cavaleiros, para além de uma trintena de peões e besteiros. Tendo saído da cidade pela alvorada e sem que o prior, seu irmão, tivesse conhecimento do que se estava a passar, a coluna avançou em direcção a Campolide. Foi nessa posição elevada, a coberto da vegetação e do relevo que bordejava o vale de Alcântara, que Nuno Álvares e os seus homens observaram a frota inimiga e, pacientemente, aguardaram. Ao cabo de algumas horas de espera, um batel aproximou-se da praia com cerca de uma vintena de homens a bordo. Os portugueses deixaram-nos desembarcar e, só então atacaram. Fizeram-no, porém, cedo demais, pois os castelhanos aperceberam-se da aproximação do inimigo e regressaram de imediato aos batéis, rumo aos navios de onde haviam saído minutos antes. Mas Nuno não pretendia deixar escapar mais esta oportunidade e, ansioso por combater, deteve-se na praia, junto do mosteiro de Santos, numa atitude claramente provocatória. A manobra surtiu o efeito desejado, pois os adversários – homens-de-armas, besteiros e peões –, agora em grande número, desceram para os batéis e rumaram em direcção ao areal.

Apesar de alguns dos seus companheiros terem, nesse momento, fugido para Lisboa – um deles foi Pedro Afonso do Casal –, Nuno Álvares continuava disposto a enfrentar o inimigo e, seguido por aqueles que ainda o acompanhavam, arremeteu a cavalo contra os combatentes recém-desembarcados. O equipamento que envergava – solhas, isto é, protecções para o tronco feitas de placas de ferro ou aço imbricadas e fixadas com cravos a uma camada exterior de couro ou tecido – protegia-o dos golpes desferidos pelos adversários. Porém, o seu cavalo, sem qualquer defesa e também alvo das armas inimigas, acabou por sucumbir, arrastando-o na queda. Preso pelos arreios do animal e praticamente impossibilitado de se mexer, estava à mercê do adversário. Assim que se aperceberam da situação desesperada em que se encontrava, os seus homens, entre os quais um clérigo armado com uma besta, acorreram em seu auxílio e, depois de cortarem a cilha da sela, conseguiram libertá-lo da montada. Todavia, em clara superioridade numérica, a vitória dos biscainhos era praticamente certa. Foi no momento em que as forças dos portugueses começavam a fraquejar que providencialmente chegaram – decerto que avisados pelos que, antes do combate, se tinham posto em fuga – reforços vindos de Lisboa sob o comando de Diogo Álvares e Fernão Pereira. Surpreendidos e, agora, muito provavelmente, em inferioridade numérica, os inimigos ainda esboçaram alguma resistência, mas acabaram por se pôr em fuga, deixando atrás de si, no areal, diversos mortos, feridos e prisioneiros. Sem qualquer baixa mortal – segundo a Crónica do Condestável e a Crónica de D. Fernando –, os portugueses regressaram então a Lisboa. Nuno Álvares, certamente radiante, tinha finalmente alcançado o primeiro feito de armas e provado a sua coragem em combate.

Miguel Gomes Martins*

*O autor escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico.

FONTES
Estoria de Dom Nuno Alvrez Pereyra, ed. crítica de Adelino de Almeida Calado da “Coronica do Condestabre”, Coimbra, Universidade de Coimbra, 1991.

LOPES, Fernão – Crónica de D. Fernando, ed. de Giuliano Macchi, Lisboa, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1975.

BIBLIOGRAFIA
MARTINS, Miguel Gomes
2013 – Guerreiros Medievais Portugueses, Lisboa, A Esfera dos Livros.

MONTEIRO, João Gouveia
2017 – Nuno Álvares Pereira. Guerreiro, Senhor Feudal, Santo: Os Três Rostos do Condestável, Lisboa, Manuscrito.

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