Os Aventureiros de al-Usbuna

De Asbuna (Lisboa) a Asafi (Safim). Excerto da Cópia moderna da Tabula Rogeriana, com o norte orientado para o topo da figura.
https://commons.wikimedia.org/wiki/File:TabulaRogeriana_upside-down.jpg

https://www.loc.gov/resource/g3200.ct001903/?r=-0.231,-0.025,1.463,0.507,0

Em al-Usbuna, no século XII, contava-se que um dia tinham partido da cidade uns aventureiros em busca de novas terras, navegando pelo mar. É impossível saber quem seriam ao certo esses homens, mas, seja como for, é notável a vocação de exploração marítima manifestada por esses antigos lisboetas, num tempo em que os mares eram um espaço especialmente perigoso e inseguro, sobretudo o Mar Tenebroso, nome que os muçulmanos davam ao Atlântico.

Em meados do século XII, o geógrafo árabe al-Idrissi compôs a sua obra magna, o Kitab Rudgar, onde descreve grande parte do mundo então conhecido, num livro oferecido ao Rei Rogério II da Sicília. O al-Andalus é um dos espaços do Islão descritos pelo autor, que terá enviado emissários para os quatro cantos do mundo, e também terá ele próprio viajado bastante, recolhendo informações. Entre os diversos povoados do Garb al-Andalus, ou seja, do ocidente do espaço ibérico dominado pelo Islão, destaca-se al-Usbuna, o nome árabe de Lisboa.

Uma das várias informações que o geografo registou sobre a cidade da foz do Tejo foi um episódio extremamente interessante que narra a viagem dos aventureiros (al-Mugharrirun) cuja expedição “tinha como objectivo saber o que o oceano encerra e quais são os seus limites”. Segundo o relato de Idrisi, oito homens, todos pertencentes a um único clã familiar, construíram um “navio de transporte” e fizeram-se ao mar, preparados para uma viagem de vários meses.

Os ventos levaram-nos para Sul, até uma terra que chamaram “ilha dos Carneiros, assim chamada porque numerosos rebanhos de carneiros pastavam sem pastor e sem ninguém para os guardar”. No entanto, a carne dos animais era intragável e os aventureiros prosseguiram a sua viagem. Doze dias depois, chegaram a uma outra ilha, mas, ao contrário da anterior, esta era habitada e cultivada. Rapidamente foram feitos prisioneiros, numa casa inserida num povoado à beira-mar, onde permaneceram até chegar um homem que falava árabe, que os interrogou sobre a sua aventura. Pouco depois, foram levados à presença do rei daquele estranho povo, constituído por “homens de alta estatura, de cor ruiva, pouco peludos, que traziam cabelos compridos, e mulheres que eram de rara beleza”. A explicação dos aventureiros ao rei sobre a sua motivação é espantosa: “que se tinham aventurado sobre o mar a fim de saber o que nele podia haver de singular e curioso e a fim de verificarem os seus extremos limites”. Rindo, o rei disse-lhes que já o seu pai antes dele, tinha enviado os seus escravos para explorarem o mesmo mar, mas que estes, após um mês de viagem viram-se forçados a regressar, porque os céus ficaram demasiado negros para continuarem a navegar. Os aventureiros foram então bem tratados, pois o rei queria que o tivessem em boa conta. Posteriormente, foram levados numa viagem marítima, onde foram vendados e finalmente abandonados numa praia desconhecida. Abordados por pessoas que os encontraram num estado miserável, perceberam que estavam em Asafi, localidade da costa atlântica do Norte de África, que os portugueses tomariam séculos depois, chamando-lhe Safim.

Assim termina bruscamente o relato de Idrisi, pois a viagem dos aventureiros tinha-os levado a uma área que o geógrafo já tinha abordado anteriormente. O que mais surpreende neste breve relato é a precocidade desse sentimento de aventura e exploração que a historiografia e a identidade portuguesa tanto prezam, aqui evidente num período histórico, em que não só o reino ainda dava os seus primeiros passos, como a navegação atlântica estava numa fase inicial marcada por várias limitações técnicas e sobretudo pela insegurança marítima. Na verdade, para os lisboetas do século XII, o perigo vinha do Norte, dos vikings que várias vezes atacaram a área de al-Usbuna. O relato dos aventureiros revela-nos uma velha tradição de navegação numa época em que a cidade estava já com os olhos postos no mar.

 Manuel Fialho

Bibliografia:

Coelho, Borges, Portugal na Espanha Árabe, Lisboa: Caminho, 2008, 54-56.

Idrisi, La Première Géographie de l’Occident, Paris: Flammarion, 1999, 267-269.

 

 

 

 

 

 

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