Cercada desde os primeiros dias de julho de 1147 por um exército composto por cerca de 3.000 combatentes portugueses e aproximadamente 10.000 cruzados, a cidade de Lisboa revelou-se desde cedo como um alvo difícil de submeter, em boa medida devido à eficácia das suas estruturas de defesa. Assim, por meados desse mesmo mês, depois de nenhum dos primeiros ataques terem levado à rendição da cidade, ou à sua conquista pela força das armas, os sitiadores perceberam que não tinham outra solução a não ser recorrer ao uso de engenhos de cerco.
Os anglo-normandos empenharam-se na edificação de uma torre que, segundo o depoimento do cruzado Raúl – testemunha presencial do cerco –, atingia uma altura de 95 pés, ou seja, 29 m, uma exigência ditada pela altura das muralhas de Lisboa, já que as bastidas tinham que ter uma altura superior à do alvo. Parece-nos, no entanto, que estas dimensões – que a Historiografia tem optado por aceitar sem qualquer crítica – estão demasiado inflacionadas, já que não seria necessário construi-la tão alta, pois a altura média das muralhas da cidade não ultrapassaria muito uma dezena de metros. Além disso, quanto mais altas, mais instáveis e mais difíceis de deslocar se revelavam, pelo que, também por estes motivos, nos parece de rejeitar a ideia de uma torre com a altura referida por Raúl.
Ainda que pudessem ser usadas simplesmente como uma plataforma elevada para que os atiradores nelas posicionados pudessem fornecer cobertura de tiro às operações desencadeadas no solo pelos seus camaradas de armas, este tipo de engenho destinava-se, acima de tudo, a transportar, devidamente protegido, um grande número de combatentes até junto do topo dos muros de uma praça-forte. Para isso, encontravam-se divididos em vários pisos, geralmente três, ligados uns aos outros por escadas internas: o piso inferior era destinado ao transporte de tropas ou, em alternativa, à instalação, de um aríete; o piso intermédio era ocupado pelos combatentes cuja missão era abordar, através de uma ponte levadiça, os adarves da fortaleza assediada; e o último piso era utilizado sobretudo por arqueiros e besteiros que, graças à posição elevada em que se encontravam – daí a importância de apresentar uma altura superior à cota dos muros e das torres –, conseguiam disparar os seus projéteis diretamente contra os inimigos que defendiam as muralhas, obrigando-os a fugir, abrindo assim caminho para a vaga de assalto. E embora dotadas de rodas, para que pudessem ser deslocadas de um local para o outro, movê-las não era uma tarefa fácil, pois exigia um terreno adequado ou previamente preparado para não oferecer obstáculos, bem como um um grande número de homens para a puxar e/ou empurrar, muitas vezes sob um intenso fogo inimigo.
Por essa altura, também os cruzados flamengos e alemães procediam à edificação de uma bastida, cujas especificidades as fontes não revelam, mas que deveria ser muito semelhante à que estava a ser construída pelos anglo-normandos. Para além disso, estes contingentes do norte da Europa ergueram ainda um outro tipo de “máquina” a que as fontes chamam “suíno”. Trata-se de uma vinae, isto é, um tipo de estrutura móvel de madeira, coberta com pranchas também de madeira dispostas em forma de telhado de duas águas e revestidas com materiais tais como terra molhada, couros e argamassas para que não fossem incendiadas. A função destes “suínos” – ou “gatas”, como são também designados – era proteger os combatentes dos disparos do inimigo enquanto avançavam em direção ao objecivo, ou durante operações de desgaste e minagem das muralhas, ou de arrombamento das portas. Decerto que dotada de rodas para facilitar a sua movimentação, esta estrutura encontrava-se, como era comum, equipada com um aríete, preso por correntes ou cordas à sua estrutura e a que os assaltantes imprimiam um movimento de vaivém regular, aproveitado para demolir a muralha ou a porta a que estava apontado.
Os flamengos e alemães procederam ainda à construção, mencionada apenas nos depoimento dos cruzados Arnulfo, Winando e Duodequino, de quatro pontes móveis operadas a partir de oito dos seus navios e cujo objetivo era aproximar, em relativa segurança, as forças atacantes do topo das muralhas e da torres do lanço fronteiro ao rio. Apesar de conhecida na Antiguidade, esta seria uma técnica absolutamente inovadora em cercos medievais e que só voltaria a ser utilizada já no século XIII. No entanto, as fontes não são suficientemente esclarecedoras ao ponto de percebermos, em rigor, como funcionavam estes apetrechos, que deveriam tratar-se de pontes “sambucas”, ou seja, de um longo conjunto de pranchas assente em prumos verticais e presas com o cordame dos navios, em que uma das extremidades assentava no convés das embarcações e a outra no coroamento das muralhas, provavelmente semelhantes às que – conforme a descrição de Políbio – foram utilizadas pelos Romanos, em 213-211 a.C., em plena Segunda Guerra Púnica, durante o cerco a Siracusa.
Os sitiadores terão demorado apenas duas semanas a erguer todo este arsenal, o que parece sugerir o envolvimento de um grande número de homens, nomeadamente de carpinteiros, quer na recolha da madeira necessária, quer na construção propriamente dita, bem como uma rigorosa coordenação dos trabalhos, tarefa de que talvez tenha sido encarregado o engenheiro oriundo da cidade de Pisa que acompanhava os Cruzados desde a partida de Dartmouth e que, semanas depois, voltaria a ser chamado a essa missão. Tratar-se-ia do mesmo indivíduo que o autor do “De Expugnatione Lyxbonensi” designa como “especialista dos engenhos” e que em finais de outubro, durante o assédio, acabaria por ser gravemente ferido numa perna. A rapidez com que todos estes engenhos foram construídos não nos deve, no entanto, espantar, pois desde que bem planeada e bem orientada, a construção de uma torre de assalto, por exemplo – sem dúvida que a mais complexa e exigente de todas essas máquinas –, podia levar apenas escassos dias.
As “máquinas” entraram em ação em simultâneo, de modo que os sitiados tivessem que dividir as suas forças para enfrentar todas essas ameaças, no dia 3 de agosto. Contudo, nada correu conforme se esperava. No rio, o vento mudou de direcção, ou começou a soprar com mais força, empurrando as embarcações que transportavam as pontes sambucas, desviando-as do seu objetivo e tornando-as inoperacionais, um desfecho para que concorreram também os trabucos de tração usados pelos sitiados e que dificultavam a aproximação dos navios. Quanto ao sector oeste, a torre de assalto dos ingleses, que começava a ser empurrada em direção à muralha, talvez contra a quadrilha limitada a norte pela Porta do Ferro e a sul pela grande torre albarrã do canto sudoeste da almedina, ficou rapidamente fora de ação, presa na areia da praia, de onde não foi possível retirá-la. A bastida permaneceu imóvel no areal durante quatro dias, ao longo dos quais foi alvo dos projéteis incendiários lançados por uma bateria de três trabucos inimigos. Os combatentes ainda terão tentado evitar que a torre se perdesse, talvez insistindo em deslocá-la e defendendo-a dos ataques inimigos, mas vendo que nada mais podiam fazer e depois de sofrerem diversas baixas, acabaram por desistir dos seus intentos, deixando a torre entregue às chamas até ficar completamente reduzida a cinzas.
Entretanto, a leste, o “suíno” construído pelos alemães e flamengos, teve um fim semelhante ao da torre dos ingleses, pois quando estava já junto da muralha, com os sapadores a procederem à britagem da base dos muros com o auxílio de um ariete, começou a ser atingido por óleo e materiais em chamas lançados pelos inimigos. O fogo rapidamente alastrou a toda a estrutura ferindo também muitos dos combatentes que aí se encontravam. Aos que conseguiram escapar das chamas, nada mais restava a não ser a fugir, deixando para trás o “suíno”, que foi completamente devorado pelo fogo, salvando-se apenas o ariete, que só a muito custo foi retirado do local. Restava apenas a torre erguida pelos Flamengos e Germânicos. Contudo, esta acabaria também, ainda durante a fase da aproximação, por ser destruída pelos Lisboetas que, primeiro a derrubaram – outro dos problemas destas estruturas era serem bastante instáveis, ainda para mais em terreno irregular – e depois incendiaram, ao que parece, através de projéteis lançados por diversos trabucos posicionados nos adarves e nas torres das muralhas da cidade e que causaram igualmente um grande número de baixas entre os combatentes cristãos, um balanço a que se somaram os mortos e feridos abatidos pelos virotões e pelas setas disparadas pelos besteiros e arqueiros inimigos.
Desmotivados por este desfecho, os sitiadores só voltaram a erguer novos engenhos de aproximação em inícios de setembro, altura em que os contingentes anglo-normandos deram início à construção de uma nova torre de assalto. De acordo com os relatos dos cruzados Duodequino de Lahnstein, Winando e Arnulfo, foi erguida segundo as instruções de um engenheiro natural da cidade de Pisa, de onde eram oriundos alguns dos mais talentosos construtores de máquinas de guerra.
Integralmente paga por Afonso Henriques, a sua construção ocupou boa parte do tempo e das energias dos sitiadores entre o dia 8 de setembro e o final da segunda semana de outubro, ou seja, o dobro do tempo gasto com as duas torres erguidas em julho e perdidas durante o ataque falhado de 3 de agosto. As fontes não explicam o motivo dessa lentidão, mas é muito possível que a dificuldade em encontrar madeira de qualidade – que mais uma vez teve que ser procurada fora da região de Lisboa – possa ter condicionado o ritmo dos trabalhos. Apesar de apresentar uma altura ligeiramente inferior à da anteriormente erguida pelos anglo-normandos – talvez para diminuir o seu peso total, evitando que ficasse também presa na areia –, nem por isso deixava de ser uma estrutura impressionante com os seus 25 metros de altura, dimensões que, mais uma vez, nos parecem muito exageradas. Para evitar que, como as antecessoras, fossem alvo dos projéteis disparados pelos sitiados, este bastida foi revestida com vimes e peles cruas de bovinos que deveriam ser constantemente encharcadas, o que servia não só para amortecer o impacto dos projéteis inimigos, como evitava, acima de tudo, que fossem incendiadas. A estrutura estava ainda dotada, ao nível do piso térreo, de duas “asas”, destinadas a proteger os combatentes que a empurravam.
E foi precisamente a entrada em acão desta torre que, quando se encontrava já a escassos metros da muralha da cidade, ditou a capitulação dos sitiados, no dia 21 de outubro, ao cabo de praticamente quatro meses de cerco. Desgastados pela fome e pelas baixas e sem qualquer perspetiva de auxílio externo, os sitiadores, depois de tudo terem feito, mas sem sucesso, para impedir que a bastida estrutura chegasse até junto dos muros que os protegiam e percebendo a iminência do assalto, optaram por se render, uma solução que, apesar dos demandos praticados por muitos dos cruzados, acabou por salvar as vidas de muitos dos habitantes da cidade.
Miguel Gomes Martins
FONTES
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