O imaginário lisboeta tem por hábito associar Alfama ao mundo árabe, numa autêntica viagem pelo espaço e pelo tempo, onde mitos e histórias coexistem num mundo mais ideal do que real. No entanto, sabemos que uma outra minoria religiosa, a comunidade judaica, prosperou em Alfama, desde meados do século XIV, até 1496, momento em que D. Manuel I ordenou a expulsão de muçulmanos e judeus do reino. Não sabemos muito sobre os judeus de Alfama, mas podemos ter a certeza que Samuel de Medina aí escreveu e terminou a cópia de um livro manuscrito onde se inseriam o Pentateuco e outros livros sagrados do judaísmo.
A judiaria de Alfama terá surgido no início ou nos meados do século XIV num momento em a população judaica de Lisboa se desenvolvia progressivamente. Seria sobretudo no século XV, que praticamente todas as comunidades hebraicas dos núcleos urbanos portugueses aumentariam significativamente, devido a um influxo de judeus castelhanos e aragoneses, sobretudo famílias oriundas de comunidades destroçadas pela violência e intolerância religiosa das brutais perseguições ocorridas nesses reinos após 1391. Entre estas famílias chegavam judeus que iriam participar no desenvolvimento do reino português através de vários ofícios e múltiplas actividades. Ao contrário do que se costuma considerar, os judeus portugueses não se dedicavam apenas a actividades financeiras, pois participavam activamente em quase todos os campos da sociedade medieval. Desde profissões que exigiam uma educação letrada, como médicos, astrónomos, financeiros, até outras actividades como tosadores, sirgueiros, tecelões, também marcando forte presença nos ofícios urbanos como ferreiros, sapateiros, alfaiates, latoeiros, carniceiros e toda uma infinidade de actividades profissionais. Na verdade, os judeus laboravam em Portugal em competição com mesteirais cristãos e muçulmanos. Uma das actividades onde os judeus se destacavam, nesse último século de coexistência, era a produção livreira, onde foram pioneiros no processo de passagem dos livros manuscritos para a imprensa mecânica, pois alguns dos primeiros livros impressos em Portugal, foram executados em oficinas hebraicas.
Os historiadores portugueses conseguiram recuperar a existência de uma escola de iluminadores hebraicos que operava na Lisboa do século XV. Mas o escriba que pretendemos aqui realçar poderá ter trabalhado de forma isolada, relativamente à escola lisboeta, visto que os especialistas lhe reconhecem relativa autonomia. Samuel de Medina, filho de Issac de Medina, trabalhou em Lisboa, entre, pelo menos, 1469 e 1490, chefiando uma equipa que produzia livros manuscritos em hebraico. Relembremos que a produção livreira manuscrita era efetuada por equipas especializadas em diferentes funções. Liderava a equipa o escriba que copiava o texto e organizava a estrutura das páginas. No caso dos livros hebraicos, os escribas copiavam o texto consonântico, sendo a pontuação posteriormente realizada pelo escriba-massoreta, que também inscrevia, no caso das bíblias, o texto massorético, um sistema de notas críticas dispostas nas margens horizontais e verticais do corpo do texto. Samuel de Medina copiou o seu livro de 309 fólios, adornado com motivos decorativos em micrografia para Jacob Cohen, filho de Jonas Cohen. O livro está actualmente em Parma, na Biblioteca Palatina, e encontrava-se já em Itália no século XVII, segundo anotações que nele constam. É possível que tenha saído do reino português após o decreto de expulsão, ou mesmo antes, sendo apenas certo que foi copiado em Alfama.
Manuel Fialho
BIBLIOGRAFIA:
Tiago Moita, O livro hebraico português na Idade Média: do Sefer He-Aruk de Seia (1284-85) aos manuscritos iluminados tardo-medievais da Escola de Lisboa e os primeiros incunábulos, Tese de doutoramento em História de Arte na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 2017. Disponível em: https://repositorio.ul.pt/handle/10451/28719
Manuel Fialho, “Morfologias urbanas na Lisboa Medieval: O caso das Judiarias (1147-1325)” in Inclusão e Exclusão na Europa Urbana Medieval, Amélia Andrade et al. (eds.), IEM, 2019, pp. 289-306. Disponível em: https://www.academia.edu/40700101/Morfologias_urbanas_na_Lisboa_Medieval_O_caso_das_Judiarias_1147_1325_