Os uniformes das milícias concelhias de Lisboa em finais do século XIV

Londres, The British Library, Chroniques de France ou de St. Denis Provenance, 1487 (Royal MS 20 E III)

 

Apesar de alguns sinais identificativos, nomeadamente ao nível da heráldica, os combatentes dos exércitos portugueses da Idade Média, tal como a maior parte dos seus congéneres europeus, não usavam qualquer tipo de uniforme. Por isso, a sua utilização, em finais do século XIV, pelas milícias concelhias de Lisboa convocadas por D. João I para o cerco de Chaves e para a campanha de 1386 tem, não só, um carácter pioneiro, como meramente pontual, já que não há registo de que estas forças tenham, nos anos subsequentes, voltado envergar uniformes, nem de que o seu uso tenha sido, pelo menos nas décadas seguintes, adoptado por outros contingentes.

 

Em finais de 1385, D. João I encontrava-se a cercar Chaves, um dos bastiões que ainda apoiava as pretensões de Juan I de Castela e de D. Beatriz ao trono português. Confrontado com a resistência da praça-forte transmontana, que estava a atrasar o calendário da campanha, que se deveria prolongar pelo ano seguinte, o rei convocou novos reforços, nomeadamente as milícias concelhias de Lisboa.

 

Rapidamente o concelho lisboeta mobilizou 210 lanças homens-de-armas, 250 besteiros do conto e 200 peões a que se somavam diversos auxiliares, tais como 2 ferradores, 2 correeiros, 2 seleiros e 2 alveitares, comandados pelo veterano Estêvão Vasques Filipe. Tratava-se de um exército numeroso e que, rodeado de todo o habitual aparato militar, devia fazer-se notar por onde quer que passasse ao longo do seu trajeto até Chaves. De tal forma que o próprio D. João I, quando os viu chegar, ficou "assaz ledo de como [esse contingente] hia corregido e sua boa ordenança". Para esse impacto contribuiu, também, o facto absolutamente inovador – pelo menos no que diz respeito às milícias concelhias portuguesas – de os cavaleiros envergarem uma libré, com um padrão comum a todas elas e previamente estabelecido, o que facilitava a identificação daqueles que as usavam e permitia aglutinar à sua volta os seus camaradas de armas ou os que sob as suas ordens combatiam. Envergada sobre o arnês, as librés, enquanto peças de uniforme, tinham, igualmente, o objetivo de diferenciar as milícias lisboetas das restantes que constituíam a hoste, nomeadamente das de Coimbra e de Santarém, que foram igualmente mobilizadas para essa campanha.

 

Não conhecemos em pormenor qual o aspeto desses uniformes, porém, é muito natural que apresentassem as cores e os símbolos heráldicos da cidade tais como o preto e o branco ou a barca com os corvos, reconhecidos desde o século XIII como os elementos heráldicos de Lisboa. Mas sendo feitas de um material tão sensível como o pano, estas peças do uniforme acabavam frequentemente por se rasgar e sujar de pó, de lama e de sangue durante a luta tornando impercetíveis tanto as cores quanto os símbolos. Para obviar a essa situação e de acordo com as informações transmitidas pela "Crónica de D. João I", para o cerco de Chaves e campanha subsequente, ficou estabelecido – eventualmente pelo concelho – que os cavaleiros das milícias lisboetas deveriam apresentar colares iguais, feitos de prata, que usariam por cima da libré, de modo a que se distinguissem dos restantes combatentes caso o tecido se danificasse e sujasse a ponto de ficar irreconhecível. Contudo, a utilização que lhes foi dada acabou por ser bem diversa, pois aqueles que os iriam usar mandaram-nos fazer em ouro ("todos tamanhos come huum comprido dedo") e cravejados de pedras preciosas, convertendo-os em elementos de ostentação e identificadores da riqueza daqueles que os usavam. Deixavam, assim, de ser uma peça que se pretendia uniformizadora, para passarem a ser um símbolo diferenciador e de algum modo hierarquizador no seio da milícia, fazendo realçar o estatuto sócio-económico daqueles que os usavam, não só face aos outros membros do contingente, como também às outras forças concelhias presentes na campanha.

 Miguel Gomes Martins

BIBLIOGRAFIA

João Gouveia Monteiro, A Guerra em Portugal nos Finais da Idade Média, Lisboa, Notícias, 1998.

Miguel Gomes Martins, “Estêvão Vasques Filipe: O percurso de um guerreiro nos finais de Trezentos”, in Cadernos do Arquivo Municipal, nº 5, Lisboa, Câmara Municipal de Lisboa, 2001, pp. 10-47.

Miguel Gomes Martins, Lisboa e a Guerra (1367-1411), Lisboa, Livros Horizonte, 2001.

FONTES

Estoria de Dom Nuno Alvrez Pereyra (Edição crítica da “Crónica do Condestabre”, com introdução, notas e glossário de Adelino de Almeida Calado), Coimbra, por ordem da Universidade, 1991.

Fernão Lopes, Cronica del Rei Dom Joham I. Parte Segunda, (copiada por William James Entwistle), Lisboa, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1968.

 

 

 

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