Apesar de deter uma posição de enorme importância estratégica, de onde era possível controlar não só o perímetro urbano lisboeta como toda a região circundante, foram muito poucas as vezes em que, durante a Idade Média, o castelo que hoje conhecemos como “de São Jorge” foi um alvo prioritário das forças que atacaram a cidade de Lisboa. Nem mesmo durante os duros cercos de 1373 e de 1384, impostos pelas hostes, respectivamente, de Enrique II e de Juan I. Na verdade, só em momentos de instabilidade interna e de guerras civis a fortaleza desempenhou um papel activo. Assim foi em Dezembro de 1383, durante o conturbado período que se seguiu à morte de D. Fernando, quando a guarnição e diversos partidários da regente Leonor Teles e da sua filha D. Beatriz se viram cercados por forças leais ao Mestre de Avis.
Na sequência do assassinato do conde João Fernandes de Andeiro, no dia 6 de Dezembro de 1383 e da fuga da rainha para Alenquer, no dia 8 – de onde partiu, pouco tempo depois, para Santarém –, a cidade ficara sob o controlo dos revoltosos encabeçados por um ainda algo titubeante Mestre de Avis, D. João, empurrado por Álvaro Pais para a liderança da oposição à regente e a D. Beatriz, mulher do rei de Castela, Juan I, e herdeira legítima do trono português. Só o castelo, comandado por Martim Afonso Valente, no lugar do alcaide João Afonso Telo, irmão da rainha, continuava a resistir. De modo a assegurar que a fortaleza não cairia em poder dos rebeldes e, simultaneamente, para poder, a partir daí, recuperar o controlo da cidade, João Afonso deu ordens a alguns dos seus vassalos – Afonso Anes Nogueira, que transmitiu essas instruções, Estêvão Vasques Filipe, Afonso Furtado e Antão Vasques, entre outros – para que se juntassem à guarnição do castelo. No entanto, só Afonso Anes Nogueira cumpriu as ordens do Telo, reunindo-se, com uma dezena de escudeiros, às forças de Martim Afonso Valente, seu cunhado.
Percebendo os riscos inerentes à presença deste foco de resistência, o Mestre de Avis deu ordens para que se iniciasse o cerco ao castelo. Foi então decidido tentar abrir uma brecha nas muralhas, utilizando-se para isso uma “gata”, ou seja, um tipo de estrutura móvel feita com madeira leve e coberta com pranchas também de madeira, em forma de telhado de duas águas e revestidas com terra molhada, couros e argamassas para que não fossem incendiadas. Como era habitual, esta “gata” estava dotada de um ariete preso por correntes ou cordas à sua estrutura e a que os assaltantes imprimiam um movimento de vaivém regular, aproveitado para britar e demolir a muralha ou a porta a que estava apontado. Mas para que a máquina fosse posicionada junto dos muros do castelo, era imprescindível atulhar o fosso que rodeava os seus lanços oriental e meridional. Porém, essa seria uma tarefa complexa e demorada, em boa medida porque teria que ser levada a cabo sob o fogo inimigo. Ora, como o tempo não corria a favor dos rebeldes – o rei de Castela estava já em território português, empenhado em fazer valer os direitos da sua mulher – foi então posto em prática um curioso estratagema que, se tudo corresse como previsto, deveria acelerar a capitulação dos sitiados.
Não se sabe ao certo de quem partiu o plano, mas é certo que os atacantes ameaçaram amarrar Constança Afonso – mulher do alcaide e irmã de Afonso Anes Nogueira – à “gata”, de maneira a evitar que as forças cercadas lançassem projécteis contra a estrutura, ameaçando ainda fazer o mesmo com as mulheres e com os filhos de todos quantos defendiam o castelo e que deveriam rondar uma centena e meia, ou um pouco mais, de efectivos. Talvez a ideia – replicada, semanas depois, em Janeiro de 1384, para forçar a capitulação dos castelos de Estremoz e de Évora, que também tinham tomado voz por Leonor Teles – tenha mesmo partido de Nuno Álvares Pereira, que chegara recentemente a Lisboa e a quem, de imediato, foi entregue o comando das operações. E ainda que não tenha sido dele a ideia da “gata”, foi, no entanto, da sua iniciativa que partiu a oferta de um prazo de 40 horas para a rendição de Martim Afonso Valente, a quem foi dada a possibilidade – mediante a entrega de dois reféns: Afonso Anes Nogueira e, talvez, Pedro Anes Lobato –, de enviar um mensageiro a Santarém para transmitir essas notícias a João Afonso Telo, de modo a que este pudesse agir em apoio dos sitiados, um procedimento habitual em situações de cerco e que mais não era que uma mera formalidade destinada a permitir aos alcaides salvar a sua posição perante o respectivo senhor, evitando que fosse obrigado a entregar ao inimigo a praça-forte que tinha sob o seu comando. Claro que o prazo concedido por Nuno Álvares era propositadamente curto, de modo a que o adversário não tivesse forma de mobilizar uma força de socorro. Isso foi imediatamente percebido pelo próprio Telo, que deve ter recebido a mensagem ainda nesse mesmo dia. De tal forma que, como adianta Fernão Lopes, terá reagido afirmando que “Eu gemtes nom tenho aqui tamtas, com que lhe possa acorrer; e ainda que as tevesse, o prazo he tã pequeno, que soomente pera ferrar nõ averia hi espaço”. Sem qualquer maneira de impedir a queda do castelo, foi então autorizada a rendição de Martim Afonso Valente e seus homens que, no dia 30 de Dezembro, entregaram a fortaleza a Nuno Álvares Pereira e ao Mestre de Avis.
Miguel Gomes Martins
FONTES
Estoria de Dom Nuno Alvrez Pereyra, edição crítica da “Crónica do Condestabre”, com introdução, notas e glossário de Adelino de Almeida Calado, Coimbra, Universidade de Coimbra, 1991.
LOPES, Fernão, Crónica del Rei Dom João I da Boa Memória. Parte Primeira (Reprodução facsimilada da Edição do Arquivo Histórico Português (1915) preparada por Anselmo Braamcamp Freire, com prefácio de Luís Filipe Lindley Cintra), Lisboa, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1973.
BIBLIOGRAFIA
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