O ataque viquingue a Lisboa em 844
Foi no início do Verão de 844, talvez nos primeiros dias de Agosto, que se assistiu à chegada à Península Ibérica da primeira frota viquingue, um episódio enquadrado na fase inicial da expansão escandinava.
Sem que as compilações de sagas escandinavas a mencionem, esta expedição está ainda envolvida em muitas interrogações, nomeadamente a respeito da procedência da frota, que tanto poderá ter vindo directamente da Escandinávia, quanto de uma das bases de operações que os viquingues mantinham, por exemplo, na Irlanda. Ainda assim, tudo indica que, antes da chegada ao ocidente europeu, as forças envolvidas nesta incursão tinham primeiro assolado a região de Bordéus e de Toulouse, tendo ainda, possivelmente ainda em 843, atacado e conquistado Nantes.
A Crónica de Afonso III – redigida em finais do século IX / inícios do século X no âmbito da corte de Afonso III das Astúrias –, regista que nos primeiros dias Agosto os atacantes se dirigiram contra Gijón, onde terão, sem sucesso, tentado desembarcar. Daí, os navios avançaram ao longo da costa até à região de La Coruña. Informado da chegada dos homens do norte à Galiza, o rei das Astúrias, Ramiro I (842-850), enviou um exército – que o próprio terá comandado –, contra os recém-chegados, derrotando-os pouco depois de estes terem desembarcado. As forças asturianas conseguiram ainda incendiar muitas das embarcações inimigas, num total de 60 ou 70, segundo a Historia Silense. E se essa contabilidade está correcta, isso sugere que se tratava de uma frota de grande dimensão, pois para além dos que foram consumidos pelo fogo, terão escapado 54 navios e outras tantas embarcações menores, isto segundo as cifras apresentadas por alguns cronistas muçulmanos. Foram precisamente estes perto de uma centena de navios que, depois da derrota na Galiza, rumaram a sul e que, ainda em Agosto, atacaram Lisboa e a região em torno da cidade, um episódio a que nem a Crónica de Afonso III nem a História Silense, pouco preocupadas com os acontecimentos ocorridos em territórios do al-Andalus, fazem qualquer referência.
Com breves alusões nas obras, por um lado, de Ibn Idari e de Ibn al-Qutiya e, por outro, na de Muhammad ibn Assat al-Qurasi, citada no al-Muqtabis, as principais fontes para o conhecimento deste ataque à cidade da foz do Tejo são os depoimentos de Ahmad al-Razi e de seu filho Isa ibn Ahmad al-Razi – ambos veiculados também pelo al-Muqtabis, de Ibn Hayyan – que, por seu lado, nada adiantam a respeito dos acontecimentos ocorridos na Galiza.
Do testemunho destes dois últimos cronistas, ficamos a saber que os viquingues chegaram a Lisboa numa quarta-feira, dia 20 de Agosto, apanhando de surpresa os habitantes da cidade que, ainda assim, devem ter tido tempo de se refugiar no interior do perímetro amuralhado – erguido ainda durante o período tardo-imperial romano – que a protegia e que apresentava, na altura, um traçado muito próximo ao da chamada Cerca Moura, mas ainda sem qualquer pano de muralha a dividir a zona alta da zona baixa. De imediato o governador de Lisboa, Wahb Allah ibn Hazm – figura sobre quem mais nada se conhece – enviou mensageiros ao emir Abd al-Rahman II, dando-lhe conta da chegada da frota inimiga, uma missiva que assim que foi recebida, levou o emir a despachar cartas para os diversos governadores do al-Andalus no sentido de serem tomadas medidas de defesa perante a iminência da ameaça.
A avaliar pelas fontes disponíveis, os magus (ou madjus), como ficaram conhecidos no al-Andalus, não conseguiram penetrar na cidade, limitando-se a devastar os seus arredores durante os 13 dias em que, como refere a obra de Ibn Hayyan – que nada adianta sobre os ataques à Galiza –, aí permaneceram e durante os quais se envolveram em confrontos, por três ocasiões, com as forças lisboetas. As fontes não são claras a ponto de percebermos se foram três tentativas de ultrapassagem das muralhas, todas elas rechaçadas pelos defensores, se foram três sortidas que estes lançaram contra as forças inimigas, ou inclusivamente se se tratou de enfrentamentos ocorridos na periferia de Lisboa, talvez no contexto do saque de algumas povoações próximas da cidade. Fosse como fosse, sem conseguirem alcançar o seu principal objetivo, os homens do Norte decidiram, ao fim de aproximadamente duas semanas, abandonar a foz do Tejo e levantar ferro em direção a sul.
No dia 2 de Setembro, a frota prosseguiu viagem ao longo das costas ocidental e sul da Península Ibérica, atacando, entre outras povoações costeiras, Cádis, Medina Sidónia e, por fim, Sevilha, onde terão chegado no início de Outubro. Dizem-nos as fontes muçulmanas que seriam cerca de 80 navios, um número que não anda muito longe da centena que, segundo Ibn Hayyan e Ibn Idari, chegou a Lisboa. E apesar de ter sido avisado por Wahb Allah ibn Hazm, da presença dos viquingues na costa do al-Andalus, o emir Abd al-Rahman II não conseguiu evitar o ataque, em boa medida porque a cidade não dispunha de qualquer cintura defensiva que a protegesse. Com contornos de grande violência, a avaliar pelo testemunho das fontes, o saque da antiga Hispalis prolongou-se durante sete dias, findos os quais os atacantes terão sido rechaçados, segundo as fontes narrativas muçulmanas, sofrendo muitas baixas e perdendo muitos dos seus navios. Ainda assim, do espólio obtido pelos viquingues nessa campanha merece destaque o elevado número de cativos, sobretudo mulheres e crianças – algumas das quais certamente capturados na região de Lisboa –, que posteriormente foram vendidos como escravos na Irlanda, onde os viquingues possuíam, desde 830, uma importante base de operações e para onde se pensa que a frota se dirigiu no final da expedição. Ainda assim, nem todos os sobreviventes partiram para norte. Com efeito, depois de conversações com as autoridades muçulmanas da região, alguns optaram por permanecer em território peninsular depois de se converterem ao Islão.
É possível, como sugere al-Maqqari, que, de regresso ao norte e já carregada de espólio, a frota tenha atacado Beja, ou melhor, as regiões costeiras da kura de Beja, mas não há certezas a esse respeito. Prosseguindo o trajecto para norte, os navios viquingues devem ter passado ao largo de Lisboa. E ainda que alguns autores acreditem – baseados numa interpretação incorrecta das fontes disponíveis – que a frota voltou a atacar Lisboa, tal não parece provável que tenha ocorrido, desde logo devido às inúmeras baixas sofridas em Sevilha e ao facto de os lisboetas estarem, decerto, prevenidos quanto a um eventual regresso dos magus e devidamente preparados para, mais uma vez, os rechaçar.
BIBLIOGRAFIA
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FONTES:
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