Não constitui novidade para ninguém que, apesar dos votos de castidade a que estavam obrigados, eram muitos os religiosos, tanto regulares como seculares, que na Idade Média – aliás, tal como em muitas outras épocas – tinham envolvimentos amorosos com mulheres. Uns mais duradouros, outros mais breves, de alguns resultaram mesmo no nascimento de filhos. A Lisboa de meados do século XV é, a esse respeito, um exemplo bem documentado, sobretudo graças às mais de trinta cartas de perdão concedidas, durante o reinado de Afonso V (1438-1481), às mulheres que na cidade incorreram nesse “crime”, pois era assim que esse tipo de situações era encarado pela justiça civil. E se estas fontes nos informam sempre das penas atribuídas às mulheres – aliás, era a elas e não aos seus companheiros, que os perdões régios eram concedidos –, nada dizem quanto às que eram impostas aos religiosos que com elas se envolviam. A razão para esta discrepância não é fácil de descortinar, mas é provável que se deva ao facto de os religiosos ficarem sob a alçada da justiça eclesiástica ou simplesmente, como sugere Luís Miguel Duarte, porque talvez não lhes tenham sequer sido levantado processos. Para além destes, que se encontram documentados, decerto que houve outros casos que não é possível identificar, nomeadamente aqueles cujas cartas de perdão não chegaram até aos nossos dias, ou que não tiveram a benevolência do rei, passando, claro está, por todos quantos não foram nunca postos a descoberto. Assim, as mais de três dezenas de cartas de perdão exaradas nos livros de chancelaria de Afonso V e que nos serviram de base para esta breve abordagem do tema, constituem, seguramente, apenas a face visível de uma realidade muito mais vasta.
Daquilo que a documentação permite perceber, tanto encontramos casos que envolvem membros do clero secular, quanto do clero regular. Entre os primeiros as fontes dão conta, entre outros, de Fernão Álvares, cónego e prior de S. Vicente de Fora; de frei Pedro, do mosteiro da Trindade; de frei Diogo, do mosteiro de S. Francisco; de frei João, do mosteiro do Carmo; de João da Corredoura, do mosteiro de S. Domingos; de frei Lopo, do mosteiro da Graça, entre muitos outros. Quanto aos segundos, o leque é igualmente diversificado: Mem Rodrigues prior de S. Mamede; João de Pontes, capelão de Martim Afonso de Miranda, conselheiro do rei; João Fernandes, prior da Igreja dos Mártires; Mem Rodrigues, capelão do arcebispo de Lisboa; Afonso Anes, chantre da Igreja de S. Nicolau; apenas para mencionar alguns casos mais facilmente identificáveis, já que uma boa parte desses indivíduos é apenas referida como “clérigos”, uma situação que pode dever-se, não tanto à preocupação em manter o seu anonimato, mas sim à forma como o caso foi conhecido, ou seja, através de denúncia, muitas vezes anónima.
Quanto às mulheres, cuja idade não é nunca referida, são na sua maioria solteiras, como Leonor Vasques; Leonor Rodrigues; Isabel Anes ou Beatriz Afonso, entre muitos outros exemplos. Mas também encontramos viúvas, como Maria Peres, Maria Jorge ou Inês Farinha. Bastante mais raros são casos como o de Branca Rodrigues, mulher de Gonçalo Martins, que frequentemente era “visitada” em sua casa por um clérigo cujo nome a fonte não regista; de Catarina Vasques, mulher de Afonso Peres, marinheiro; ou o de Branca da Rosa, que foi encontrada pelo seu marido Lourenço Anes, na sua própria casa “a desoras”, com frei João da Corredoura, razão pela qual o marido assassinou o religioso.
Alguns caso são, pelo menos é isso que é sugerido pela documentação, relacionamentos breves ou mesmo fugazes, como o de Catarina Ferreira com um frade. Talvez tenha também sido isso que se passou com Beatriz Vasques, que reconheceu ter tido uma “afeição carnal” com um clérigo beneficiado da Sé de Lisboa. Contudo, estes parecem tratar-se de exemplos pontuais, pois na maior parte das situações documentadas, o relacionamento tinha – pelo menos é essa a imagem que perpassa – um carácter de alguma estabilidade. Aliás, muitas das mulheres em causa são identificadas como “teúdas e manteúdas” desses clérigos.
Veja-se o exemplo de Inês Anes, que durante uns quatro ou cinco anos foi “teúda e manteúda” de um Martim Gonçalves, clérigo de missa, o de Isabel Anes, “manceba” de um “clérigo de missa” cujo nome não é mencionado; ou o de Leonor Vasques “barregã” do monge agostinho Fernão Álvares. Menos claro parece ser o caso das mulheres que são identificadas com “servidoras” de clérigos. E ainda que o termo possa sugerir uma relação de serviço ou laboral, na verdade o que a palavra parece designar é algo bem diferente, pois de outra forma Isabel Fernandes não teria dito no seu depoimento que tinha estado “alguns tempos até agora por servidora de um frei Pedro de Santo Espírito frade da Trindade, do qual pecado ela era já apartada”. Esta hipótese é, aliás, confirmada pelo exemplo de Inês Anes, que durante quatro ou cinco anos foi “servidora e manteúda” de Martim Gonçalves, clérigo de missa; ou ainda de Berelida Gil, manceba e servidora de um cónego do mosteiro de S. Vicente de Fora de nome João das Aldas.
É inegável que sentimentos como a atração, e/ou o amor estiveram na base de muitos desses relacionamentos. Contudo, as fontes são, a esse respeito, silenciosas. Ainda assim, em alguns documentos fala-se da “afeição”, como no caso de Inês Afonso e do prior da igreja dos Mártires, João Fernandes, ou no de Inês Farinha e do clérigo de missa Rui Lopes. E seria também um sentimento muito forte aquele que ligava Beatriz Afonso a um frade cujo nome as fontes omitem e que levou a que fosse degredada da cidade por um ano. Contudo, a quatro meses do final da pena regressou a Lisboa, alegadamente, devido ao agravamento do estado de saúde de sua mãe, de quem teve que cuidar, um regresso que a levou de novo para os braços do dito frade com quem, assim, “tornara a pecar”.
E embora tudo isso pesasse no estabelecimento desses relacionamentos proibidos, é inegável que foi a busca de protecção e de segurança financeira que levou muitas dessas mulheres a envolver-se com membros do clero. É isso que, embora nunca dito de forma explícita, encontramos nas entrelinhas da documentação, muito em particular nos termos “teúda e manteúda”, utilizados para classificar a relação que com eles mantinham. Ainda assim, mais raramente, encontramos depoimentos de mulheres que são inequívocas a respeito dos motivos que as levaram a uma relação desse tipo. Veja-se o caso de Maria Pires, viúva, que afirmava que “por muitas necessidades que lhe sobrevieram de pobreza, ela tivera de fazer com um frei João da Trindade”. Assim, parece evidente que na esmagadora maioria dos casos, tanto eles como elas sabiam que se estavam a envolver numa relação proibida pela justiça civil e pela justiça eclesiástica. Assim, talvez a única pessoa que, entre os mais de trinta casos analisados, parecia desconhecer que estava numa relação com um religioso foi Margarida Anes, que chegou inclusivamente a casar com Lopo Fernandes, que lhe escondera o facto de “clerigo de hordees”.
Como é fácil adivinhar, muitas dessas ligações deram origem a descendência. Leonor Rodrigues, por exemplo, teve vários filhos – a fonte não indica quantos – fruto da ligação a Afonso Anes, chantre da igreja de S. Nicolau, tal como no caso de Catarina Vasques e um clérigo cujo nome se desconhece, de Isabel Rodrigues e do cónego Álvaro Afonso ou de Isabel Dias e do prior da Igreja de S. Mamede. Se bem que mais raros, há alguns exemplos em que se conhece o número de filhos que resultaram desses relacionamentos. Veja-se os casos de Inês Anes e do franciscano frei Diogo, que tiveram um filho; ou o de Catarina Rodrigues e do monge agostinho frei Pedro, que também tiveram apenas um filho.
Mais difícil, dados os silêncios das fontes, é descortinar a duração dos relacionamentos, porquanto as fontes são, de um modo geral, vagas, registando apenas que durou “alguns tempos”; ou “certo tempo”. Claro está que algumas cartas de perdão permitem perceber que se tratava de casos já com vários anos, como afirma Inês Farinha a propósito da suas “afeição” com o clérigo Rui Lopes e que, segundo a própria, se manteve “durante muito tempo”. Raros são pois os exemplos da ligação de Inês Anes e Martim Gonçalves, que a carta de perdão regista que se prolongou por quatro ou cinco anos, tal como na carta concedida a Isabel Anes, onde se assinala que manteve uma relação com um clérigo por cinco anos.
Duradouras devem também ter sido as ligações de que resultaram filhos, como a de Isabel Rodrigues com Álvaro Afonso, de quem “ouvera alguuns filhos”. Ainda assim, não é o facto de as fontes serem omissas a esse respeito, que nos deve levar a pensar tratar-se maioritariamente de casos de curta duração. Pelo contrário.
A avaliar pelas fontes, foram sempre as mulheres que puseram termo à relação, fazendo-o quase sempre de forma voluntária e por reconhecerem que estavam, como as próprias afirmavam, a incorrer em pecado mortal. Foi o caso de Leonor Rodrigues, de Isabel Fernandes, de Inês Anes, de Isabel Anes, de Isabel Álvares, ou de Beatriz Vasques. Mais difícil é descortinar se o fizeram mesmo de forma voluntária ou se, como também é provável, já depois de o caso ter sido conhecido pelos oficiais da justiça do rei. Fosse como fosse, é certo que isso as livrou de uma acusação formal e de uma condenação.
Mas outras houve que, talvez por não se terem antecipado à justiça, acabaram mesmo condenadas e forçadas ao cumprimento de uma pena que, na maior parte das situações correspondia ao degredo. Leonor Vasques, por exemplo, foi presa e, depois de julgada, degredada de Lisboa e seu termo durante um ano, a mesma pena que foi imposta a Branca Rodrigues, a Catarina Ferreira e a Beatriz Afonso, entre muitas outras. Um pouco mais pesada foi a pena imposta a Catarina Peres, que para além do degredo por esse mesmo período de tempo, teve ainda que pagar uma multa de 1000 reais brancos. Mas o caso mais expressivo é o da condenação de dois anos de degredo imposta a Branca da Rosa, muito provavelmente por se tratar de um caso extra-conjugal e que, para mais, terminou com o seu marido a matar o clérigo dominicano com que se envolvera. E ainda que as penas de degredo tenham sido, todas elas, alvo de perdão, num ou noutro caso elas acabaram por ser comutadas através do pagamento de uma multa, como sucedeu com Constança Álvares e com Beregilda Gil, que pagou 600 reais brancos para a Arca da Piedade. Mesmo a acima referida pena de dois anos de degredo imposta a Branca da Rosa acabou por ser perdoada em troca pelo pagamento de uma multa de 1500 reais brancos. Por vezes o perdão chegava já depois do início do degredo, como nos casos de Catarina Ferreira, ao cabo de cinco meses ou de Mor Anes, quando esta tinha já cumprido dois dos 12 meses a que tinha sido condenada.
Nalguns casos, as mulheres, de alguma forma informadas das acusações que sobre elas pendiam, optavam por tentar escapar à justiça, como no caso de Mécia Dias, que apesar de se ter posto um ponto final na relação com o carmelita frei João, decidiu fugir da cidade com receio de vir a ser acusada e condenada, uma decisão semelhante às que foram tomadas por Maria Peres e por Catarina Rodrigues.
Contudo, na maior parte dos casos documentados, as mulheres preferiram tomar a iniciativa de confessar o crime / pecado, já que isso deveria facilitar o perdão do rei. Talvez o fizessem sabendo já que o seu caso teria sido objecto de denúncia e que, mais tarde ou mais cedo, a justiça haveria de lhes bater à porta.
Se o faziam de forma sincera ou não, é impossível saber, mas quase todas as mulheres em causa afirmavam, para justificar esse pedido de perdão, ter consciência do pecado em que tinham incorrido e que pretendiam “viver bem e honestamente”, como nos casos de Leonor Vasques, ou porque desejavam, como Isabel Fernandes, “viver como viviam as boas mulheres, honestamente”. Se cumpriram essa vontade, não o sabemos, mas facto é que entre todos os casos conhecidos, quase todas elas parecem ter deixado de vez as relações. Só mesmo Beatriz Afonso veio a reatar a sua ligação, talvez porque o que a unia ao frade em causa era demasiado forte para ser quebrado.
Miguel Gomes Martins
FONTES
Arquivo Nacional – Torre do Tombo
Chancelaria de Afonso V, Livros 2, 5, 16, 21, 22, 28, 29, 31, 32 e 33