É conhecida a atenção dedicada, desde cedo, por Afonso III à cidade de Lisboa que, assim, se converteu num dos principais locais de estadia da corte e numa autêntica “capital” do reino avant la lettre. Entre as inúmeras medidas tomadas pel´O Bolonhês merece destaque o reforço das estruturas defensivas da cidade, nomeadamente a edificação de uma barbacã – uma das primeiras a ser erguida em Portugal – que protegia, em toda a sua extensão, o lanço ocidental da velha “Cerca Moura” e que em 1372 continuava ainda a desempenhar integralmente o papel para que tinha sido concebida.
Um documento proveniente do cartório do Mosteiro de Chelas datado de Fevereiro de 1261 dá-nos conta da realização de uma importante campanha de obras nas estruturas de defesa da cidade, as quais estariam já em curso nessa altura, quando os alvazis da cidade receberam a quantia de 369 libras e 20 soldos e meio, recolhida em diversas paróquias da urbe e destinada a essas mesmas obras. As paróquias em causa situam-se, umas no interior da Cerca Moura, junto do lanço Sul da muralha (Sé, S. Jorge, S. João da Praça e S. Martinho), e outras no seu exterior, a oeste do lanço ocidental da cerca (S. Mamede, S. Nicolau, Madalena, S. Julião, Santa Justa, Santa Maria de Alcamim e S. Lourenço). Ficavam, portanto, excluídas deste pedido as paróquias de S. Bartolomeu e de Santiago, situadas no interior da cerca, e as de S. Tomé, S. Pedro de Alfama, S. Miguel de Alfama, Salvador, Santiago Estêvão de Alfama, S. Vicente, Santo André e Santa Marinha, a leste da cerca; e a paróquia dos Mártires, a mais ocidental das paróquias lisboetas. Excluída encontrava-se ainda a de Santa Cruz do Castelo, mas porque se encontrava isenta do serviço de anúduva e dispensada de contribuir em pedidos desde o governo de Sancho I. Nesse sentido, o facto de o documento nada adiantar relativamente à contribuição financeira destas últimas paróquias, pode sugerir que as obras em questão terão incidido apenas nas zonas Sul e Oeste da cidade. Trata-se certamente do mesmo pedido lançado antes de 1260 e do qual os moradores da alcáçova afirmavam estrar isentos, argumentando serem “privilligiados que nam vaam as cavas nem aduas nem paguem pedido”, o que se compagina com o facto de a alcáçova não se encontrar entre os bairros cujos moradores contribuíram para esse imposto extraordinário. Mais difícil é precisar quais as obras a que se refere o documento, uma questão para a qual Augusto Vieira da Silva que, apesar de conhecer o diploma em causa, não encontrou qualquer resposta.
Uma interessante proposta de interpretação desse documento surgiu há alguns anos através do olisipógrafo Eduardo Sucena, segundo o qual o documento de 1261 está relacionado com a edificação de uma muralha cujo traçado partia do canto sudoeste do castelo em direção à zona onde, já no século XVI, veio a ser erguido o mosteiro de Nossa Senhora da Rosa, obliquando, então, em direcção à Cerca Moura, seguindo paralelamente a esta até às proximidades da Porta do Ferro. Segundo este autor, a “muralha de Afonso III partia do castelo até ao local onde veio a ser erguido o mosteiro de Nossa Senhora da Rosa, prolongando-se até ao Largo dos Trigueiros; daí seguia para norte pela Calçada de S. Lourenço e pela Rua das Fontainhas. Para sul do Largo dos Trigueiros, atravessava o Beco dos Surradores, seguindo pelo Beco do Rosendo, correndo paralela à Rua da Madalena até à Rua das Pedras Negras, terminando na Porta do Ferro”, ou mais provavelmente, como pensamos, até às proximidades da Torre da Escrivaninha.
Mas tratar-se-ia realmente de uma muralha, para mais com um traçado redundantemente próximo da velha cerca da cidade? Não nos parece. Além disso, duvidamos que tivesse uma extensão assim tão grande e, como tal, que partisse do castelo para sul ao longo do lanço oeste da cerca. Nesse sentido, a hipótese mais plausível é a de O Bolonhês ter erguido não uma muralha propriamente dita, mas sim uma barbacã destinada a proteger o flanco ocidental da cidade, aquele que se encontrava mais exposto a eventuais ataques de piratas – sobretudo muçulmanos – lançados a partir da costa atlântica ou da foz do Tejo e que até finais do século XIII eram, tudo o indica, frequentes e que levaram à edificação da muralha dionisina da Ribeira. Com efeito, as fontes atestam a existência de uma barbacã, em 1260, nas imediações das Fangas da Farinha, ou seja, nas imediações da Porta do Ferro e que, a avaliar pelas indicações de Vieira da Silva, se estenderia para Norte, pelo menos até às proximidades da Ermida de S. Crispim, local onde foi identificada por aquele olisipógrafo, que detectou igualmente alguns dos seus troços na zona da Porta da Alfofa, da Porta do Ferro e um pouco a sul, já nas proximidades da Torre da Escrivaninha. Para além disso, as referências documentais posteriores – 1370-1373 – a uma barbacã situada entre a Porta da Alfofa e a Porta do Ferro, isto é, entre os extremos norte e sul do lanço ocidental da Cerca Moura, parecem-nos confirmar a presença dessa estrutura – a que, de certa forma, também se alude num documento de 1366 – e cuja missão era proteger o lanço de muralhas delimitado por aquelas duas portas.
Afigura-se-nos também possível que aquela estrutura se estendesse um pouco mais para Sul, rodeando a Torre da Escrivaninha para, a partir daí, seguir paralelamente ao lanço Sul da Cerca, já que em 1255 as fontes revelam também a presença de uma barbacã a proteger as Portas do Mar, embora esta possa não passar de uma pequena “barbacã de porta”. Ainda assim, a possibilidade de se tratar de uma única estrutura – e não de duas – continua a fazer sentido, já que foram precisamente as freguesias das zonas ocidental e sul da cidade que contribuíram para o pedido a que se refere o documento de 1260-1261. Contudo, quer se trate apenas de uma ou, pelo contrário, de duas barbacãs distintas, uma coisa parece certa: terão sido erguidas durante o governo de Afonso III, o que faz dela(s) a(s) primeira(s) a ser edificada(s) em Portugal.
Tudo indica que, também do lado oriental existisse uma estrutura semelhante, documentada em finais do século XV e que protegia, pelo menos, a zona da Porta de Alfama, embora seja possível que se estendesse para norte e sul desse local.
Miguel Gomes Martins
FONTES:
IAN/TT, Mosteiro de Chelas, M 89, doc. 1, de 1261, Fevereiro, 15.
IAN/TT, Leitura Nova, Estremadura, Livro 1, fl. 2, de [1260], Agosto, 17.
AML-AH, Livro II de D. Dinis, D. Afonso IV e D. Pedro I, doc. 4, de 1294, Junho, 4.
AML-AH, Livro I de Serviços a El Rei, doc. 3, de 142, Setembro, 24.
AML-AH, Livro I de Quitações e Desistências, doc. 2, de 1366, Julho, 2.
Chancelaria de D. Afonso III. Livro 1, ed. de Leontina Ventura e António Resende de Oliveira, Vol. I, Coimbra, Imprensa da Universidade, 2006, doc. 57, p. 59, de 1255, Julho, 10; e doc. 202, pp. 227-228, de 1260, Janeiro, 28.
BIBLIOGRAFIA
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SILVA, Augusto Vieira da
1987 - A Cerca Fernandina de Lisboa, Vol. II, Lisboa, Câmara Municipal de Lisboa, 2ª edição.
1987 – A Cerca Moura de Lisboa. Estudo Histórico descritivo, Lisboa, Câmara Municipal de Lisboa, 3ª edição.
SILVA, Manuel Fialho
2016 – Mutação Urbana na Lisboa Medieval. Das Taifas a D. Dinis, Lisboa, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (Dissertação de Doutoramento, policopiada).
SUCENA, Eduardo
2003 – “Os muros afonsinos de Lisboa”, in Arqueologia e História, Vol. 53, pp. 45-48.