Ataques navais castelhanos a Lisboa durante as Guerras Fernandinas (1)

Batalha naval de Sluys (Jean Froissart, Chroniques - Bibliotheque Nationale de France, MS Fr. 2643, Folio 72)

Foram três, as chamadas Guerras Fernandinas (1369-1371, 1372-1373 e 1381-1382). E se na primeira as armadas portuguesas tiveram uma clara supremacia nos mares, conseguida através de um duro, mas bem-sucedido, bloqueio naval que manteve a frota castelhana encerrada no Guadalquivir, já na segunda e na terceira guerra e por motivos muito diversos, o cenário foi bem diferente.

A primeira vez em que, durante esses conflitos, as embarcações inimigas entraram no estuário do Tejo ocorreu em plena Segunda Guerra Fernandina e no contexto do ataque conduzido à cidade por Enrique II de Castela no início de 1373 e numa altura em que a hoste régia castelhana tinha já iniciado o cerco. Vinda de Sevilha e comandada pelo experiente almirante Ambrósio Bocanegra, a frota, composta por 12 galés, entrou no Tejo no dia 7 de Março com a missão de fechar, pelo lado do rio, o bloqueio a Lisboa.

Naturalmente, a intervenção desses navios não constituía uma novidade, pelo que, assim que teve notícia da sua aproximação, o almirante Lançarote Pessanha, em colaboração com o capitão da frota, o exilado castelhano Juan Fozin – chegados poucos dias antes de Santarém, em cumprimento das ordens do rei, que ali optou por permanecer –, decidiu armar quatro galés e algumas das 15 naus que se encontravam fundeadas na Ribeira, com o objetivo de partir ao encontro da armada inimiga. Pouco depois de largarem ferro, as embarcações portuguesas avistaram – talvez ao largo da península de Setúbal – os navios inimigos que, tudo o indica, se encontravam mal preparados para o combate. Além disso, o facto de as naus terem uma maior capacidade de manobra em mar aberto retirava às galés castelhanas boa parte da sua superioridade tática e vantagem numérica. Ou seja, as circunstâncias pareciam jogar a favor dos navios do Pessanha. Porém, em vez de avançar na direção das embarcações inimigas, o almirante optou por fazer meia-volta e, ao contrário da opinião de Juan Fozin, esquivar-se ao confronto, conduzindo os navios de regresso a Lisboa, alegadamente porque preferia enfrentar o adversário em pleno rio Tejo, de modo a que todos na cidade pudessem observar a sua vitória, uma explicação dada por Fernão Lopes, mas que, como sublinha Luís Miguel Duarte, não convence.

A frota castelhana entrou, pois, no rio sem qualquer entrave, pese embora uma tentativa frustrada de Juan Fozin para travar o seu avanço – o comandante veria inclusivamente a sua nau aferroada por uma galé, da qual só a custo se libertou –, posicionando-se em frente das Tercenas, isto é, na zona ocidental da cidade. Quanto aos navios portugueses, tinham-se instalado mais a montante, junto da Porta do Furadouro, ou seja, em frente do lanço sul da chamada Cerca Moura. Nessa altura, a distância entre as duas armadas era de apenas 700m. Durante o compasso de espera que se seguiu e em que os contendores se observaram e estudaram mutuamente, os castelhanos aproveitaram para reforçar as guarnições das suas embarcações com mais combatentes vindos de terra. Enquanto isso, um algo lisboeta e talvez com D. Álvaro Peres de Castro – a quem o rei tinha atribuído a responsabilidade de coordenar a defesa da cidade –, para decidir qual a estratégia a adoptar. Do que aí foi discutido, nada se sabe, mas a avaliar pelo que se seguiu, parece claro que a decisão tomada nessa reunião de emergência foi a de pôr a frota a salvo. Com efeito, assim que as galés de Bocanegra iniciaram o avanço, Lançarote Pessanha deu ordens às suas galés para fazerem meia-volta e subirem o Tejo, na direcção dos esteiros da margem sul, ou seja, para fora do alcance do adversário que, surpreendido com a manobra dos portugueses ainda encetou uma curta perseguição, da qual desistiu rapidamente. A decisão do Pessanha, apesar de ter posto a salvo parte da frota de Lisboa, ter-lhe-á valido a destituição. Pelo menos é isso que é comum afirmar-se. No entanto, os motivos que levaram ao seu afastamento podem até nem ter que ver com a alegada incompetência demonstrada por esse acto, pois de outro modo não teria sido chamado de novo a assumir o cargo em 1381. Tivesse isso, ou não, uma relação direta com a sua atuação durante o cerco, certo é que acabaria por ser substituído pelo igualmente pouco capaz João Afonso Telo, irmão da rainha e alcaide de Lisboa, mas que surge documentado no cargo apenas em 1376. Ora, este intervalo de três anos não nos esclarece a respeito do momento concreto da substituição, que pode até nem ter ocorrido logo após o cerco. E se nos recordarmos que desde 1372 que o rei vinha cumulando de benesses o seu cunhado, talvez a nomeação para o almirantado possa ser interpretada mais como uma recompensa a João Afonso Telo, do que propriamente como uma punição pelo desempenho do Pessanha durante o cerco. Quem abandonaria também o seu cargo na frota pouco depois do cerco foi Juan Fozin, substituído por Gonçalo Tenreiro e documentado no cargo de capitão-mor, pelo menos, a partir de Julho de 1373, embora neste caso os motivos para o seu afastamento tenham sido bem diferentes.

As naus, que ao contrário das galés, não retiraram de imediato, ficaram, assim, completamente desprotegidas e convertidas em presa fácil para a armada adversária que, sem grande dificuldade, aprisionou diversas dessas embarcações. Os lisboetas ainda tentaram reagir a este revés, lançando fogo a uma dessas naus – com o objetivo de a destruir – porquanto se encontrava perigosamente próxima dos muros da cidade, podendo vir a ser utilizada pelo inimigo para empreender o assalto às muralhas. A embarcação em causa era propriedade de um mercador de nome, ou alcunha, Machico – identificado como mestre de uma barca do rei em 1379 – e que, depois disso, viria a exigir uma indemnização pela perda do navio. Mas se a destruição dessa nau evitou o assalto à cidade, de nada serviu para alterar o rumo dos acontecimentos. Na realidade, no dia 7 de Março o cerco castelhano fechava-se também pelo rio. Lisboa ficava, assim, completamente isolada, facto que contribuiu para que, no dia 19 de Março, por iniciativa do legado papal, o rei português aceitasse negociar as pazes, um passo essencial para que, no dia 24, um mês após a chegada das forças castelhanas ao Monte de S. Francisco, fossem concluídas as operações militares da Segunda Guerra Fernandina e assinado, no dia 7 de Abril, o acordo de paz de Santarém.

Miguel Gomes Martins

FONTES

ANTT, Chancelaria de D. Fernando, Livro 1.

AYALA, Pero López de – “Crónica del Rey Don Enrique II”, in Cronicas, ed. de José-Luis Martín, Barcelona, Planeta, 1991, pp. 435-507

Descobrimentos Portugueses: Documentos para a sua História (Edição de João Martins da Silva Marques), Vol. 1, Lisboa, I.N.I.C., 1988.

LOPES, Fernão – Crónica de D. Fernando, ed. crítica por Giuliano Macchi, Lisboa, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1975.

BIBLIOGRAFIA

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2003 – “De Afonso IV (1325) à Batalha de Alfarrobeira (1449) - Os desafios da maturidade”, in Nova História Militar de Portugal (Dir. de Manuel Themudo Barata e Nuno Severiano Teixeira), Vol. 1 (Coord. de José Mattoso), Lisboa, Círculo de Leitores, pp. 163-287.

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