Sapatarias da Baixa e do Chiado
O sapato é um dos bens mais comuns, diários e universais: atravessa todas as camadas sociais e serve, com o vestuário, de indicador social. E as sapatarias reflectem isso: é um comércio para todas as classes sociais, há-as para todos os gostos e bolsas, para todas as idades e identidades, sendo procuradas mais particularmente pelas senhoras. Com efeito o homem vai menos à sapataria, tem menos sapatos a uso - «só tem o preto, castanho e azul escuro, enquanto a mulher tem uma infinidade de cores e formatos à escolha!» A mulher usa muitos mais sapatos, botas, sandálias, etc., para combinar com a indumentária: «bem calçada, bem penteada, mesmo que menos bem vestida, a mulher já está muito bem apresentada!», conforme adiantaram os profissionais do ramo. Por isso as sapatarias só de senhoras são 11, e exclusivamente para homens não há nenhuma! Essa procura feminina é sobretudo sazonal - faz-se nas duas estações - o que não encerra amiudadas vezes ser procurada ao longo do ano, já os homens «só compram sapatos quando precisam!»
Ao todo são 47 sapatarias, 30 das quais pertencem a 12 empresas ou marcas: Seaside e Raul Pereira SA com 4 lojas cada; 2 empresas com 3 lojas cada: Teresinha, Anusca-Tania-Katrina; Hélio, Foreva, Godiva, Jandaia, Jean Bottier, Aerosoles, Brunus, Guimarães com 2 lojas cada. As restantes 16 sapatarias são detidas por uma só empresa ou firma, podendo esta ter ou não, outras sapatarias algures. Estes 47 estabelecimentos ocupam ao todo 152 pessoas que manuseiam milhares de modelos diferentes, que mudam 2 vezes por ano, conforme a “estação”, todos os anos lançam novos modelos e atendem centenas de pessoas por dia. O sapato experimenta-se, compara-se e “namora-se” até ser escolhido. O gesto do vendedor se abaixar frente ao cliente, para o ajudar a (des)calçar, com gesto profissional, auxiliando com a calçadeira, tão comum no passado, caiu em desuso, já só os empregados mais antigos o praticam … Do mesmo modo, raras são as sapatarias que têm banquetas de sapataria, com um plano inclinado para o cliente pôr o pé e onde o empregado se sentava! Hoje o empregado fica em pé e o cliente calça-se.
Algumas memórias sobre a moda para sapatos e sobre o seu uso
Para José Pereira da Silva, proprietário da Bandarra SA., «As mulheres são compradoras muito mais implacáveis do que os homens, que esses sim compram por impulso: elas procuram, comparam, sabem quando há saldos, que modelos vão estar em promoção, conhecem as qualidades do material, o seu conforto, não há impulso na compra das mulheres!» O Sr. Regino Antunes Paulo da Cruz, proprietário da Sapataria do Carmo, mais de 80 anos de idade e mais de 60 como comerciante de sapataria, sintetiza a evolução do uso do sapato pelos lisboetas da seguinte forma: «Do pós guerra até à revolução de 74, eram mais os sapatos de toilette, salto alto, pois cuidava-se sobretudo da apresentação. A partir dos anos 1980-90 realce para os sapatos sem salto, mais práticos. Nos homens dominou sempre o atacador, tendo os sapatos de pala menos procura, inspirados nos mocassins, lançados nos anos 1960, de criação inglesa. A bota, antes de elástico, sempre se vendeu: alta para as senhoras desde os anos 1950 e baixas para homem. Hoje usa-se é meio salto - já não os saltos de 8 a 11cm». Para João Manuel Gomes, da Hélio na R. Garrett, há 55 anos vendedor de sapatos, «Os modelos ficam, vão e voltam, os materiais é que mudam: antes mais calfe, mais verniz, pelica, cetim, etc., hoje sempre a pele mas também tecidos ou telas e depois mudam os pormenores. A grande mudança nas modas foi em 1975-77 com as plataformas altíssimas - 1cm, 2cm… iam até 4cm - homens ou mulheres! - altíssimos! e depois eram as calças à boca de sino, a tapar! Foi a maior mudança na moda de calçar. Actualmente as plataformas de 1 cm não são nada comparadas com aquelas! Outra mudança foi o fato e gravata bem formais, usados com ténis e depois os ténis com roupa informal, o que fez baixar as vendas aos sapatos de couro e pele». Esta mudança desde os anos 1990 é confirmada por outros profissionais, como António Coelho, da Hélio na R. Carmo, com uma experiência de 33 anos: «Os ténis, em versão menos desportiva e mais urbana, entraram muito na indumentária quotidiana e até de toilette. Também noto o regresso dos saltos altos entre as senhoras dos 20 aos 30 anos, ou o uso de sandálias no Verão e botas no Inverno por certas mulheres, numa passagem brusca sem qualquer transição. Mas a maioria das senhoras hoje opta por salto de meia-altura, que tanto dá para o dia-a-dia como para uma toilette ou uma ocasião especial. E de 15 em 15 anos ou de 20 em 20 anos, a moda volta, igual, em ciclos!». Mas a quebra no uso do sapato convencional, fechado, em pele, sobretudo a sua não reparação em sapateiro, é a maior mudança dos últimos anos. Por exemplo, na última década, muitos jovens de Lisboa, mas não só, passaram a usar muito mais sandálias e sobretudo havaianas, o chinelo raso em borracha.
Comércio e indústria do calçado hoje
Manuel João, proprietário da Sapataria Arte e vendedor há mais de 40 anos, acrescenta: «Éramos um conjunto de 5 sapatarias elegantes: Arte, Paris, Lord, Lisbonense e Violeta (hoje Stonefly) que vendiam só sapatos de toilette, mas hoje temos de vender também sapato de uso corrente, sempre bom e de qualidade, mas alguns feitos em Espanha, mais acessível e com um design bonito. O fabrico nacional está muito caro e são cada vez mais os turistas que o compram». E o Sr. João Ricardo da Sapataria Deb, com mais de 40 anos a trabalhar em comércio de sapatos, enfatiza o equilíbrio entre os novos materiais sintéticos, mais económicos e a saúde e conforto do pé: «A indústria e comércio de sapataria contemporânea não deixam ninguém descalço. A partir de 10€ toda a gente pode andar calçado: toda ela é atraente e cómoda, toda ela tem design, mas uma é barata, de materiais sintéticos, menos duráveis e menos saudáveis; e a outra mais saudável, mais duradoura, em pele e sola - é mais cara. E o nosso trabalho é aconselhar bem a cliente: oferecer o que parece melhor ao cliente e evitar-lhe problemas, explicar quais são os materiais - da pele aos sintéticos - e tentar fazer um equilíbrio entre o que a cliente gosta, o que pode pagar e o que lhe faça menos mal aos pés: há que ver até onde o cliente quer gastar. Vamos experimentando até o cliente escolher». Por outro lado a preocupação com o conforto - o sapato ajustar-se de imediato ao pé sem exigir a adaptação inicial - é outra mudança a que a indústria tenta responder oferecendo novos materiais menos rígidos, mais modelos, inovações mais suaves para o andar porque «um sapato para calçar bem, não se pode sentir, é leve, é como que a pele do pé». Mas os tipos de calçado foram e continuam a ser muito variados, conforme as ocasiões ou as actividades: sapatos, sandálias, socas, sabrinas, botas, botins ou galochas, chinelos, pantufas. Existe ainda um ramo especializado de sapatos de desporto, associado à roupa de desporto, que elencamos num folio próprio.
As sapatarias e o seu lugar na cidade
Tradicionalmente, desde sempre, séc. XIX - XX, existiram muitas sapatarias em Lisboa, com várias concentrações pela cidade: ruas Pascoal de Melo e António Pedro, a Arroios; rua do Loreto e Cç. do Combro; rua da Palma, Martim Moniz e Mouraria; Baixa, etc. Hoje essas concentrações permanecem, permitindo “percursos” ou deambulações ao longo delas: com as clássicas cinco sapatarias, todas umas ao lado das outras, temos a rua 1º de Dezembro, percurso que se prolonga pela rua do Carmo até à rua Garrett ou para Santa Justa e rua Augusta, tanto para o turista como para os nacionais, com lojas bem apresentadas, clássicas ou modernas; da Travessa Barros Queirós à rua D. Duarte e Praça da Figueira, são as grandes marcas mas não só, para o sapato económico e popular.
Lojas sempre atraentes
Ao longo dos tempos, muitas das lojas mais aparatosas da Baixa e do Chiado, eram e são as sapatarias: seduzir as clientes não é só pelo sapato mas também pela decoração da sapataria! A Lord, pela sua notável decoração, é a pérola deste ramo, senão mesmo uma das lojas mais belas da Baixa e Chiado. Ao mais atento, quatro lojas revelam uma decoração especial: espaços amplos, mas não simétricos, todas de esquina, aproveitando a luz e ampla abertura ao exterior, de exposição em baixo, tipo mesa, para melhor deixar ver o interior; calcário branco em algumas paredes ou montras para ligar à fachada pombalina, muita luz e muito espaço como o melhor luxo que se pode oferecer. São a Bandarra, obra de 1991 do Arqt.º José Nuno Beirão, a Ratinho, Camper e Stonefly, todas da empresa Bandarra SA. dirigida por José Pereira da Silva, que opta por linhas sóbrias, decoração muito despojada, em bons materiais e com bom gosto. Há também as lojas que se destacam pelo seu belo espaço e toque de arquitectura: a ARTE e a Godiva, ambas na Augusta. Mas a inovação na decoração em sapatarias, vai para a mais recente abertura: Eureka, um verdadeiro salão de charme! A rua Augusta e as suas transversais concentram ainda outras sapatarias de decoração cuidada, de cariz mais contemporânea. Contudo, o observador mais atento identifica um padrão de decoração, que se pode sumariar na decoração-tipo identificada em 12 destas sapatarias: porta ao meio, balcão ao fundo com insígnia atrás; prateleiras de cada lado, muita luz, montras “transparentes” - que deixam ver todo o interior; poucos sapatos expostos, com destaque para cada sapato. Os sapatos de homem ficam dum lado, os das senhoras do outro, num espaço mais generoso. Este desenho-tipo distribui-se igualmente pelas decorações “modernas”, “clássicas” ou “tradicionais”, mas não tanto nos projectos mais elaborados ou de arquitecto. No cuidado e interessante arranjo interior, destacam-se: Lúcia, as 2 Helio e Anabella. Numa decoração mais moderna, mas igualmente agradável, os grupos ARA e Aerosoles cada um com as suas linhas e cores próprias, embora semelhantes no desenho de conjunto. Temos ainda um lote de lojas clássicas tradicionais: Contente, Presidente, Deusa, Anusca, Tânia, Katrina. Recordando a transição do séc. XIX para XX, a Ponto de Prata, com uma magnífica fachada em ferro trabalhado, digna de uma visita e classificada como património. A Sapataria Carmo é um desses casos em que o encanto do espaço não se mede aos palmos: cuidada e bem preservada decoração de meados do séc. XX, e entrar ali é admirar tanto os bonitos sapatos como o estabelecimento em si! Na ausência de decoração ou de apresentação cuidada, estão as “lojas-armazém” que empilham caixas de sapatos, com um exemplar em cima, em pleno espaço de atendimento, estreitando a passagem: tudo à vista, as existências medem-se pela altura da pilha de caixas! Outro elemento decorativo que mudou nas sapatarias foi o desaparecimento das paredes forradas de caixas de cartão, típicas de todas as sapatarias do séc. XX que sobreviveu até cerca de 1970-80, e que já só existe excepcionalmente na Deusa, Carmo e poucas mais. Com efeito, era o modo prático de ter os sapatos à mão no próprio espaço de atendimento, de modo arrumado e composto. As sapatarias de Lisboa continuam a ser para todos, com a sua distinção própria, mais ou menos atractivas, mas sempre úteis e apelativas.
Guilherme Pereira com a colaboração de Helena Monteiro e Vanessa Figueiredo (ISCTE- IUL)
Levantamento das Sapatarias da Baixa e do Chiado (descarregar PDF).